Antes de virar a página (Artigo)

Encerrei no último dia 31 o mandato com que me honrou o ex-presidente Lula para
implantar a Empresa Brasil de Comunicação e presidi-la no primeiro quadriênio. Fiz isso
com dedicação e espírito público. Terei orgulho de ter atendido ao chamado dele para dotar
a nossa democracia de uma instituição que lhe faltava, a TV Pública e o sistema público de
radiodifusão. O custo foi alto mas valeu à pena. Saí com as mãos limpas, o patrimônio
menor e a alma maior. Agradeço ao Correio Braziliense por ter me proporcionado, neste
período, o espaço mensal dos artigos em que falei, quase sempre, de EBC e comunicação
pública. Farei isso mais uma vez, para um epílogo com minhas próprias palavras, antes de
virar a página.

Valeu pela obra realizada, pelo legado que nós, diretores fundadores, funcionários,
colaboradores e apoiadores entregamos à nova gestão, que sob a liderança de Nelson
Breve, há de ser também profícua. O legado não se restringe à TV Pública, hoje realidade
nacional e internacional. Está bem descrito no vídeo postado em www.ebc.com.br e na
publicação “Quatro anos de um ideal democrático”.

Para construí-lo, sustentei por quatro anos uma posição sacrificial. Não falo
só de renúncias e adversidades mas sobretudo de incompreensões, internas e externas,
algumas beirando o macarthismo. Eu poderia ter renunciado, teria me poupado mas
teria comprometido o projeto. Quis fazer isso no início, quando entendi que seria difícil
trabalhar com diretores que não escolhi. Um amigo, o ex-deputado Virgilio Guimarães, me
advertiu: “A MP não passará e você será a culpada”. Já com a lei aprovada, em outra crise
foi o então senador Tião Viana que me aconselhou: “Votamos a lei confiando em você.
Está nos anais. Renunciar será uma ofensa ao Congresso”. Depois, pela primeira e única
vez, voei no avião presidencial para falar com Lula. Entre Belém e Brasília, na presença da
então ministra Dilma, disse que precisava sair. “Não faça isso, você já começou a obra,
precisa terminar. Tire todo mundo que estiver atrapalhando”, disse Lula. Fui em frente. Na
última semana de seu governo, após a entrevista para a série que dirigi, “A Era Lula”, disse
que pensava sair logo após a posse de Dilma. Ele insistiu, como já fizera o ministro
Franklin Martins, cujo apoio foi decisivo para a consolidação da EBC, na importância do
cumprimento integral do mandato. Eles estavam certos, mas no meu caso, foi um erro.

Fiquei, mas tendo claríssimo que só para concluir o mandato. No meu
circulo próximo, todos sabiam disso. Não pleitearia nem aceitaria mais quatro anos. Afora
as razões pessoais, agora havia o conflito aberto com o Conselho Curador. Para a nova
maioria, originária de consultas públicas auto-regulamentadas, o colegiado tinha poder
sobre tudo EBC, e não apenas o de zelar pela observância dos princípios na programação,
como diz a lei. Interferência do Governo eu não precisei repelir mas também não aceitaria
a violação das prerrogativas e responsabilidades da diretoria. Para isso a lei conferia
mandato ao diretor-presidente. O ponto crítico foi a ordem para retirar os programas
religiosos do ar, em nome do laicismo do Estado. Nossa divergência foi registrada em
artigo aqui no Correio: A TV pública deve espelhar a sociedade, não o Estado. A posição
do Conselho foi derrotada pela Justiça, com a concessão de liminares às Igrejas, e pelo
Congresso, que promete anular a resolução caso ela não seja revogada.

Mas antes, em fevereiro, mandaram-nos refazer o plano de trabalho anual.
Ele propunha a programação mas não informava sobre orçamento, custos e contratos,
temas afetos ao Conselho de Administração. Obedecemos. Passei a receber ordens do
funcionário que eu cedi ao Conselho, a pedido da presidenta Ima Vieira.. Quiseram e
querem definir o modelo do Operador da Rede Pública Digital. Ouvi grosserias públicas,
como a do conselheiro Aarão Reis: “sua função é trabalhar, a minha, te controlar”. Tudo
está gravado ou em atas. Nesta época, declarei que só responderia pela execução do plano
até outubro, quando deixaria o cargo. Pensei que isso os sossegaria. Mas foram ao Planalto
apresentar a candidatura do conselheiro Murilo Ramos, e a ministra Helena informou-
os de que a prerrogativa era exclusiva de Dilma. Na reunião seguinte ouvi, como um
poste, longo debate do Conselho sobre minha sucessão. Em 25 de agosto, no Alvorada,
reiterei à presidenta que, mesmo se quisesse, não poderia ficar. Nelson Breve já estava na
EBC a meu convite e era nossa alternativa. Mas temendo a recondução, o núcleo duro do
Conselho começou a mandar avisos pela imprensa: se Dilma me reconduzisse, aprovariam
o meu “impeachment”, ou seja, a destituição por dois votos de desconfiança, prevista
na lei. O Google informa. A nota mais eloqüente saiu blog “Poder Online” em 09/09/
2011, dia seguinte a uma reunião de trabalho entre a presidenta, os ministros da Secom e
do Minicom, eu e o presidente da Telebrás. O tema era TV Digital mas acharam que era
sucessão na EBC. ‘“O Conselho não nomeia mas demite”, diz a nota.

Dei início à transição com Nelson e comecei a produzir o balanço do quadriênio.
O Conselho desmarcou a audiência pública em que ele seria apresentado, no dia 14.
Mas era nosso dever prestar contas, fizemos o ato aberto do dia 27 passado. Eu mesma
convidei vários jornalistas por email, informando que era minha despedida. Apenas
dois conselheiros compareceram, em caráter individual, mas lá estiveram mais de 300
pessoas, os presidentes do Senado e da Câmara, parlamentares, diplomatas, jornalistas,
produtores audiovisuais, radiodifusões privados, públicos e comunitários. Os resultados
foram mostrados e aplaudidos. A ministra Helena, sócia do legado, fez discurso generoso
sobre meu papel. O presidente Sarney declarou-se impressionado com tudo, a começar da
moderna sede do Venâncio 2000. Repetiu isso mais tarde em discurso no Senado.

Mas no dia seguinte os jornais anunciaram que o Governo decidiu me substituir
por desacordo com a gestão e apreço ao Conselho. Que eu havia perdido a disputa pela
recondução. Repito que eu precisaria ser louca ou suicida para jogar minha biografia sob
a espada desmoralizante da destituição anunciada. Ocupei o cargo como missão, não como
emprego. Planejei deixá-lo em silêncio, com o dever cumprido e a transição realizada.
Mas o dano moral causado por matérias unilaterais, originárias de fontes covardemente
ocultas sob o “off”, obrigou-me a revelar o não-apurado. Agora espero que Nelson e a
diretoria possam trabalhar sem sobressaltos. Que o Conselho, importante para garantir
a expressão da sociedade no sistema, retorne ao seu papel legal e institucional. Que as
imperfeições da lei sejam corrigidas. Voltei ao tema em nome da Verdade, razão de ser do
jornalismo. Em nome dela retornarei ao meu ofício.

Tereza Cruvinel, jornalista
Publicado no Correio Braziliense em 5/11/2011