quinta-feira, 30 de junho de 2011

Um canoeiro na bruma


Enfim, voltar ao blog, e só poder fazer isso às 2 da manhã. Mas se consigo, e escrevo algo, me alegro. Uma crônica para voces. TC

(Crônicas da Península)

                                               Um canoeiro na bruma
           
            Num dia desta semana que passou voando,  tivemos uma manhã de Avalon. Pelo menos no Lago Norte, uma bruma densa e alta subiu do Lago e envolveu boa parte da  Península.  Na minha casa, a  massa de névoa, formalizando a chegada do inverno,  invadia a varanda.  Eu podia tocar aqueles fiapos de nuvem úmida e eles pareciam embaraçar-se em  meus cabelos despenteados um pouco antes das sete,  a mente ainda oscilando entre o sono pesado  e a necessidade de acordar.   A bruma subia de  lá, do espelho  escuro do Lago, como um vapor,  como o sopro de um grande animal adormecido numa planície gelada. Um animal siberiano.
            Foi então que a  vi, quando olhava para a fumegação lacustre. Uma canoa atravessava a bruma, canoa de remos manuais. O remador, tudo indica que era um homem, movimentava os dois braços imprimindo à embarcação um deslizamento  uniforme e quase retilíneo. Ia em direção á Ponte do Bragueto, vinda dos lados do Clube do Congresso.
            A canoa me fisgou, e fiquei algum tempo seguindo-a com os olhos.
            De onde viria aquela pessoa àquela hora da manhã, naquelas condições de tempo? De onde viria ou para onde iria?
            Outras perguntas brotavam, e isso ajudava-me a despertar: Iria ele em busca de um amor ou de um trabalho? Os pescadores do Lago eu conheço, saem à noite, de preferência com a lua clara, nunca com este tempo,  nem  a esta hora da manhã. Ou voltaria o homem de uma noite de amor proibido, saindo cedo e de canoa da casa de uma amante? Não, claro que não, estou delirando. Amores desta ordem devem existir por aqui,  mas o amante não sairá de canoa, e  nem por água. E ainda que goste de navegar, terá uma lancha ou um barco a motor, como os tantos que singram esta parte do Lago. Talvez o canoeiro seja um traficante de drogas ou se dedique a outros ilícitos. Roubam muito por  aqui. Na minha casa assaltam meu pé de manga-maçã, roubam ferramentas e já  roubaram um barco com carreta e tudo, içado por outra embarcação.  Mas talvez o canoeiro seja um trabalhador honesto e more em algum terreno livre na orla norte. Talvez viva de favor nos fundos de uma destas boas casas,  e se dedique a algum trabalho lá para as bandas do Bragueto, ao qual prefere chegar de canoa.  Seja como for,  ele me causou forte impressão. Na manhã mais fria do ano até agora,  apesar da bruma espessa e da umidade,  ele não hesitou em seguir seus planos. Estava indo ou voltando de canoa porque assim planejara e desejara. Se quisesse, caminharia um pouco e teria ônibus fácil naquela direção. 
            Na vida ordinária, já não persistimos no caminho traçado quando achamos que ele se tornou difícil e brumoso. Acabamos buscando um atalho, uma trilha clara, de preferência uma via asfaltada, e evitaremos o frio, o calor e o engarrafamento.  A algum lugar chegamos pelo caminho mais fácil mas não com aquele sentimento honroso de ter enfrentado todos perigos em busca de nossa Ítaca.  Como este canoeiro, eu  continuo gostando de caminhos e horas  difíceis embora nunca tenha chegado a Ítaca.
            Enquanto eu tinha estes pensamentos um tanto inúteis, o sol ameaçou e a bruma começou a dissipar-se.   A varanda agora estava com o ar limpo. Um quero-quero sobrevoou o gramado.  Busquei o Lago mas a canoa havia sumido, lá para os lados da ponte,  sobre a qual a vida passava nos automóveis indistintos, ao longe.

01.7.2011