quarta-feira, 18 de julho de 2012

Amostras de Cruvinel (o pintor)



Isso aqui é uma pequena amostra da exposição  maior "Amostras de Cruvinel", que estará no Mezanino do Teatro Nacional de Brasilia, do dia 20, sexta-feira próxima, ao dia 28 de julho deste 2012, com apoio da Secretaria de Cultura.do GDF. A exposição faz parte do encontro "Contemporâneos Velhos de Guerra", que reunirá em Brasília, pela sexta vez, ex-alunos e ex-professorse da UnB nos anos 60,  anos de sonho, utopia e tragédia da Universidade criada por Darcy Ribeiro. Eles ousaram nas artes e nas ciências, quebraram tabus e enfrentaram a ditadura.  Com um deles, ela desapareceu, e agora esperamos que a Comissão da Verdade revele o que aconteceu com Honestino Guimarães depois de ser preso no Campus, em 1968, com os colegas protestando e cercando a viatura. Naquela crise, a Universidade foi invadida, muitos foram presos, cerca de 200 professores, que incluiam nomes da fina flor da inteligência brasileira de então, foram demitidos ou se demitiram.  O físico Roberto Salmeron foi um deles e tem um belo livro sobre o assunto. Padu, o jornalista Antonia Padua Gurgel, também escreveu sobre esta saga. Eu vivi tudo isso novamente, de forma um pouco mais amena, nos anos 70. Quem arregaça as mangas para que este encontro aconteça, mais que todos, é o arquiteto Antonio Carlos Morais de Castro, o Morais. Falei muito do encontro, agora falo do pintor e sua obra.

Antes que me pergunte, Luiz Carlos Cruvinel é de Morrinhos, Goiás. Eu,  de Minas. Coromandel/Abadia dos Dourados. Os meus ancestrais, como os dele, sairam do núcleo Cruvinel de Uberaba, uma gente que veio vindo, do litoral para o Sertão de Minas, passando por São João Del Rey,  Guaxupé, Formiga, Desemboque, Sacramento etc. Então, em algum distante lugar do passado, somos parentes. No sangue. Mas no coração, Cruvinel é meu-primo irmão de primeiro grau. Se eu falar que é irmão, o Luiz Humberto Cruvinel, fotógrafo, meu único irmão biológico, ficará  com ciuúmes. Luiz Carlos tem este lugar no meu coração, pela pessoa inteligente, correta e generosa que é,   pelo artista que habita nele. Tudo extensivo à  Alcione, sua mulher, também artista plástica, ao Júnior, Julia e Marina. 
 Adolescente,  pouco depois  de chegar a Brasília deparei-me um dia com  uma exposição dele na galeria da W-3 Sul, 508, da Fundação Cultural. Acho que não existe mais. A W-3 norte não existia.  Fiquei curiosa e nunca descansei até conhecê-lo,anos depois, numa tarde seca,  no decadente conjunto Conic, onde tomamos muitos cafés com pão-de-queijo trocando figuras sobre os Cruvinel, uma gente muito louca que não vem ao caso aqui. Nunca mais nos perdemos. Participei, indisciplinadamente, de O Caixote, a linda revista eletrônica de arte que ele produziu com Lizete Mercadante e outras pessoas criativas e criadoras. Pode ser visitada e lida ainda, na Internet. 

Não sou crítica de arte, apenas amante. Os quadros dele me impactaram, desde a tal exposição que vi pela primeira vez. Mais tarde é que conheci a obra de Siron Franco, e soube que os dois e outros mais compunham uma especie de nova escola de arte goiana. O fato é que achei tudo muito lindo nos quadros do Luiz:  a fina técnica, o pincel quase invisível,  os temas, um quê de surrealismo, o vermelho e o azul gritantes. Para não falar bombagem, reproduzo o que Walmir Ayala disse dele: 

"Cruvinel extrai do caos a imagem do homem contemporâneo. Como tantos artistas de tantas épocas, esta imagem surgia sem gosto terrestre (no dizer ceciliano), perplexa como a dos nascituros condenados à vida"..."A tudo isso Cruvinel propõe uma energia cromática que se liga ao remoto oficio arquitetônico. Arquiteto e pintor tocam-se as máos e forjam um tempo plástico que se consuma original, na medida em que se torna verdadeiro e lúcido".

Mais não digo. Convido meus conterrâneos e contemporâneos de Brasília (eu sou UnB anos 70, combinado?)  a visitarem a exposição do Luiz, fruindo um momento de prazer diante do belo.  E os dos anos 60, a procurarem o Morais caso queiram participar da programação do encontro, "Contemporâneos Velhos de Guerra", parafraseando mestre Waldirmir Carvalho, para  recordar aqueles tempos inesquecíveis.
TC

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terça-feira, 10 de julho de 2012

Vera e Drummond

"Voltou a escrever coluna, abandonou o blog", devem estar pensando alguns fieis leitores que nunca me abandonaram. As tarefas do recomeço são muitos, tenho de refazer minha rede de contatos, tomar providências burocráticas, restabelecer rotinas e disciplinas, uma serie de coisas. E depois, ainda procuro um modo técnico de postar aqui as colunas da semana. Vou encontrar.
A vida segue, o blog também, com ou sem coluna. Dedico esta postagem a Vera Brant, uma amiga querida, uma pessoa especial,  quem teve ou tem vínculos fortes, tecidos pelo afeto,  com pessoas  tão especiais e tão importantes como JK, Darcy Ribeiro,  Drummond, Castellinho, Niemeyer, tantos outros. Esta semana, eu e um grupo de amigos e amigas comuns recebemos dela uma mensagem  por email, que transcrevo, juntamente com o texto que nos enviou, um belo artigo sobre Drummond, contendo parte da correspondência que ela trocou com ele. Por tudo de belo ali revelado, compartilho com vocês, embora o artigo de Vera esteja também no site dela: www.verabrant.com.br. Uma dádiva.



"
Meus queridos amigos

No momento em que o nosso querido Drummond é homenageado pela FLIP, em Paraty, fico me lembrando da carinha de descrença dele quando eu disse que, daqui a cem anos, de todos nós que habitamos o Planeta Terra, só ele e o Oscar Niemeyer seriam lembrados. O Darcy concordou comigo.

Em outubro de 2002, escrevi um artigo em sua homenagem, a pedido do Almyr Gajardoni, para a Revista LEITURA, publicação cultural da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

Encontrei um modo de participar das homenagens ao meu querido amigo, encaminhando a vocês o artigo.

Beijos,
Vera".

O artigo:


DRUMMOND

Vera Brant

Conheci Carlos Drummond de Andrade no final de 1974, visitando o Darcy Ribeiro, que havia sido operado do pulmão, no Rio da Janeiro.
Já se recuperando da cirurgia, o Darcy, que regressara do exílio para a retirada do câncer no pulmão direito, estava feliz com a visita do querido amigo.
O papo, delicioso, durou umas três horas e eu, encantada de conhecer pessoalmente o mais admirado de todos os meus  poetas preferidos, contava casos divertidos para distrair o Darcy e agradar o Carlos.
O Cyro dos Anjos e vários outros amigos  do poeta me haviam dito que ele era muito fechado, falava pouco, era muito sério. Mas, não sei se para distrair o Darcy, que estava meio tristonho, ele contou casos muito engraçados.
Lembro-me de haver contado uma história do Abgar Renault: Eu ia ser operada e precisava fazer uma transfusão de sangue. Contei a Abgar que me disse: “Verinha, transfusão de sangue é a coisa mais perigosa que existe”.
Eu, espantada, perguntei:
– Por quê, Abgar?
– Porque você não sabe o nível intelectual do doador.
O Darcy comentou: “Se é assim, estou perdido, já devo estar ignorante. Só tomei sangue de piau”.
Contei ao Carlos que o Darcy me havia perguntado, logo que chegou do exílio: “Você não acha terrível eu ter que ficar só com um pulmão?”
E que eu havia dito: “Não acho, não. Se você fosse jogador de futebol, eu acharia. Mas, para quê intelectual precisa de dois pulmões? Para ler e escrever, um só basta”.
A mãe do Darcy, Dona Fininha, chegou ao quarto e ele, rapidamente, vestiu a camisa que havia tirado por causa do calor. O Carlos perguntou a razão daquele gesto e o Darcy respondeu:
– Ela pensa que eu fui operada do estômago. Se vir o estrago que fizeram com as minhas costas, vai desmaiar.
O Darcy contou ao Carlos que o Juscelino pretendeu visitá-lo mas o agente do DOPS que ficava na porta do seu quarto, não permitiu.
Lembrei-me de contar-lhes a luta que havia sido levar o Juscelino a fazer as pazes com a cidade que criou. Além da proibição dos militares, havia o trauma pelo fato de, meses antes, o pequeno avião que o conduzia e que estava com vazamento de óleo, ter sido proibido de descer no aeroporto de Brasília. O piloto teve que fazer um pouso arriscado, numa fazenda próxima, com uma pista mínima.
A partir dessa tarde, fiquei grande amiga do Drummond. E passamos a nos corresponder, constantemente.
E nos falávamos, todos os sábados, ao telefone.
Remeti-lhe o original de um livro, “A Ciclotímica”, que eu havia lido para o Darcy no hospital e que havia sido um dos temas da nossa conversa naquela tarde. Na realidade, não era bem um livro. Eu tinha a mania de escrever, para me desafogar, e depois jogava tudo fora. Mas aquela história de uma menina dos treze aos quinze anos, trombando na insensibilidade e na incompreensão humana dos adultos, não sei por quê razão, mantive comigo. E, quando fui fazer companhia ao Darcy no Hospital, levei para ler para ele, tentando distraí-lo um pouco.
Ele gostou tanto que mostrou ao Hélio Pellegrino e  ao Otto Lara Resende, que elogiaram o livro. E pediu-me que remetesse uma cópia ao Carlos, quando chegasse a Brasília.
Em resposta à carta que acompanhava o livro, o Carlos escreveu:

Vera: Depois do nosso conhecimento pessoal, naquele papo ameno em torno da poltrona do Darcy convalescente, julgo-me no direito  de estranhar o “senhor” cerimonioso de sua carta. Esta foi afetuosa e no clima daquele dia, mas o “senhor”, Vera, me coloca assim numa situação de monumento tombado e é meio inibitivo, sabe?
Não importa. Gostei muito de ler “A Ciclotímica”, não só por ser um esquizotímico, sempre curioso e até guloso das manifestações opostas, que me despertam uma saudável inveja, como ainda porque você consegue realmente dar expressão literária ao temperamento ciclotímico, e então a coisa assume um ar de coisa viva, palpitante, envolvente, que cativa o leitor. Seu estilo direto, objetivo, leal, desconhece a sofisticação”.
Termina a carta, assim: “Escrevendo ao Darcy, não deixe de dizer-lhe que ele continua presente no meu afeto, e que terei a maior alegria quando ele estiver reintegrado em nossa vida brasileira, em que mais precisamos dele que ele de nós. E, para você, o abraço amigo e carinhoso do, Carlos – 19/02/75”.

Fiquei na maior felicidade. Quando contei ao Juscelino que havia conhecido o Carlos, no Rio, e recebido dele uma linda carta, ele comentou com o nosso pequeno grupo de amigos:
– Estamos perdidos! A Vera, agora, só vai querer saber do Drummond. Tudo o que dissermos, de agora em diante, ela vai achar burro!
Respondi a carta do Carlos, dizendo-lhe do meu contentamento, contando umas histórias e anexando cópia de uma carta que havia remetido ao Darcy.
Ele respondeu-me:

 “Rio, 10 de março de 1975.
Vera, amiga:
Ora muito bem. Estamos amigos. E não foi preciso recorrer a intermediários. Não foi melhor assim? O encontro, em volta do Darcy, criou a boa relação, que as cartas consolidam.
Por falar em carta, não preciso dizer que me tocou sua prova de confiança. Junto restituo a cópia, que deve ficar em seu poder, e não no meu arquivo. É um documento admirável, mostrando a mulher valente e lúcida que você é, no controle dos seus sentimentos. Mas, pergunto – não indicará também um conceito talvez deformador da natureza da relação carnal? A Bíblia chama-a de ‘conhecimento’, e eu acho certo este nome. O conhecimento físico completa a imagem que temos do próximo. Ligá-lo a um estado de paixão é dar-lhe uma força que ele não tem em si. Já não falando no aspecto de necessidade biológica, que o legitima e lhe tira a sacralidade. Em suma, ou em princípio: não entendo porque o sexo, realizado com uma visão clara das coisas, corrompa a amizade. Mas este é um assunto que poderia ser discutido até o infinito, e eu não tenho paciência para discutir. Apenas manifestei o meu ponto de vista. Um dia, aqui no Rio, poderemos conversar a respeito. Sem perigo nenhum, ouviu? Sou um respeitável senhor de 70 e tantos anos...
Escreva o livro que você pretende e, conte tudo. Para contar só o superficial ou o aveludado, realmente não vale a pena escrever. Já temos um número excessivo de memorialistas que retocam e falsificam a vida. E você, com o seu talento, pode nos dar um retrato precioso de costumes e psicologia social e humana, do tempo que está vivendo. O que há de melhor nos livros do Nava, ao lado da criação literária, é a coragem.
Um grande abraço, com o carinho, do Carlos”.

Foram treze anos de correspondência, conversas ao telefone e, de vez em quando, uma ida ao Rio para um papo delicioso. Selecionarei algumas cartas, dele e minhas, para dar uma idéia da troca de ternura entre dois amigos que se amaram muito.

12.05.75
“Vera, amiga: Foi bom você me ter dado o endereço do nosso Darcy. Eu tinha mesmo a intenção de escrever a ele, o que acabo de fazer. No dia da partida, ele quis vir aqui em casa para se despedir. Eu estava de saída para as obrigações do dia a dia e prometi ir ao seu apartamento, quando voltasse do centro. Mas o trânsito estava para lá de enguiçado, e quando cheguei a Sousa Lima, o nosso homem já se mandara para o Galeão. Fiquei triste e chateado, pois por minha culpa não lhe dei o abraço de despedida – esse abraço que não faz somente parte do ritual, em alguns casos é um ato do coração, com ternura”.
E termina, assim: “Bem, não respondi sua carta anterior porque... sou ruim de correspondência, sabe? Não se aborreça se no futuro eu atrasar respostas ou conservá-las em estado de carta mental. Leve tudo isso à conta da minha condição de setuagenário e continue minha amiga, como eu me declaro de você e do seu jeito franco e desabusado, que é convite a gostar ou não gostar, de saída. Um beijo, Vera. Carlos”.

O Juscelino cismou de candidatar-se à Academia Brasileira de Letras. Tentei demovê-lo. Disse-lhe que o seu compromisso com as brasileiros era político. Se ele ganhasse, o que eu achava muito difícil porque todas as pessoas naquela época eram extremamente medrosas, os militares iriam dizer que permitiram. Politicamente, seria péssimo. Mas ele queria, porque queria ser eleito alguma coisa. Cheguei a perguntar-lhe: Não serve, síndico do seu prédio? Mas ele não estava para brincadeiras. Resultado: Perdeu, e ficou arrasado. Carlos e eu havíamos comentado, pelo telefone, e nenhum de nós dois acreditava na vitória.
Escrevi ao Carlos:

“28.10.75-  Carlos, meu querido:
Tentei, de todas as maneiras, evitar o desastre. Primeiro, argumentando com o Juscelino para que ele desistisse de sua candidatura à Academia. Inútil. Ele queria porque queria ser candidato.
Pedi ao Otto que me ajudasse. Ele me respondeu: “A sua carta ao J.K. é um berro à moda do seu temperamento. Generosa, solidária. Você tem razão, mas aqui baixinho, entre nós: deixe o homem se candidatar ao que quiser, ao que deixarem. Por quê não? Ele é um homem institucional. Fez a vida e a biografia segundo as instituições. Foi até Presidente da República- você já viu cargo mais acadêmico e institucional? Se ele se candidatar a segundo corneteiro da banda Santa Cecília de Brumadinho deixe, quê que tem?”
Achei muita graça mas continuei lutando. Não adiantou nada. E o resultado foi o que vimos.
Quando me lembro da admiração que sentia pelo Guimarães Rosa e o ódio que tive quando ele morreu de Academia, chego a me consolar com a derrota do Juscelino.
A burrice dos outros até que nos tem ajudado. A nossa inteligência é que está em curto-circuito e não percebe isto.
Naquela noite, quando saí da casa da Maria Estela, tendo deixado o Juscelino naquele estado de tristeza de soldado ferido voltando da guerra perdida, escrevi-lhe uma enorme carta: “Você, com este temperamento agitado, não suportaria ficar naquele papo furado de gente que fica olhando para trás, pensando para trás, recordando o tempo que era considerado gênio, um elogiando a obra do outro, cada qual querendo parecer mais culto, ninguém preocupado com a atual situação do país, a miséria geral, com a amargura de cada um de nós, nem fazendo nada para tentar diminuí-la”.
E terminei a carta, assim: “Virão outros amanhãs, outras auroras. Auroras que trarão dias limpos e puros que, visto de acordo com a consciência de cada um, parecerão mais limpos e mais puros, ainda. Que Deus lhe dê as auroras e os azuis que tanto merece”.
Êta humanidadezinha mixuruca, hein, Carlos?
Vou tentar encontrar um bom livro de ficção para ler. Não estou suportando a realidade. Estou no maior enjôo.
Só gosto de você e mais meia dúzia de gente.
Beijos, meu querido. Até breve.

Vera”

E ele mandou-me esta bela carta:

10.12.75
Vera, querida:
Também não foi por falta de saudade e bem-querer que não lhe escrevi mais. Nem por malandragem. O que se passa comigo, e me deixa triste, é que a obrigação jornalística de escrever (faço isso há 50 anos, com intervalo de 10) me rouba a alegria de escrever pelo gosto de escrever, às pessoas do meu carinho. Falta de tempo, propriamente, não é, nem eu passo a semana inteira rabiscando três croniquinhas e mais algum trabalho avulso, de encomenda. É um bloqueio diante do papel, da caneta, da máquina, entende? Saber-me obrigado a escrever para o jornal o resto da vida, como profissional autônomo (boa piada! Autônomo!) me faz abominar a escrita, o alfabeto, o Correio. Me compreenda e perdoe.
Bem, seu livro está aqui me fazendo companhia; se o reabro, é você que está a meu lado, com toda a vivacidade, a inteireza, a rude e gostosa maneira de enxergar e julgar as coisas. Mas sinto nele, mais que desabafo existencial, o vigor de uma expressão literária que tanto poderia manifestar-se no caso da Ciclotímica, em feliz conjugação de tema e de forma nervosa de desenvolvê-lo, como em outros conteúdos humanos, observados. Você tinha necessidade de contar essa história, compreendo. E, ao contá-la, provou a sua força fixadora de tipos e situações, de criadora de atmosferas tensas e empolgantes – recriadora de vida, em suma. Não lhe parece que a novela abre caminho para outras realizações, já agora mais amplas, mais livres de condicionamentos individuais, porque foi o próprio mecanismo da ficção que você descobriu, ao penetrar no terreno da experiência vivida?
Pense nisso, minha querida, e passeie a vista em redor, assuntando o material imenso que Brasília, com seus novos tipos de convivência, ou a nossa Minas enroladíssima, fonte inesgotável de recalques e matreirices, oferecem a quem sabe manejar a linguagem escrita. É uma provocação que lhe faço, com intenção de assanhá-la. E nem sequer sou original, pois o Edgard Mata Machado, por outras palavras, sugeriu a mesma coisa.
Achei uma delícia a sua carta ao Juscelino, embora eu veja de outro modo o jeito dele, candidatando-se à Academia e expondo-se à derrota. Compreendo seu desejo de penetrar naquele estranho recinto, ou em qualquer outro, já que lhe estão vedadas as portas naturais abertas ao temperamento político. Além do mais, ele tem o gosto da aventura, e não é aventureiro quem só se anima a jogar na certa. Mas ouvi dizer que opositores dele, lá dentro, estão procurando convencê-lo a se candidatar de novo, mostrando-se arrependidos do voto contrário. Não é uma graça? Outra boa piada, a Academia.
Bem, não há outro jeito senão desejar a você, e ao seu povinho, essa coisa completamente sem sentido, chamada Feliz Natal, feliz Ano Novo. Com esperança de alguma coisa melhorar, em alguma parte do mundo e até aqui.
Um beijo do Carlos

Quando, em maio de 1976, o Carlos Castello Branco perdeu o seu filho, Rodrigo, eu ia todas as tardes para o seu apartamento, tentar consolar o casal. Numa noite, o Castello estava sentado numa almofada lendo a correspondência de pêsames. E começou a falar do Drummond: da amizade que os uniu e da briga que tiveram, por um mal entendido. O Castello disse na sua coluna algo que o Carlos não gostou e revidou, também no jornal.
Pedi: Deixe-me ver o telegrama do Carlos.
– Não existe nada do Carlos, respondeu-me.
Entendi tudo. Ele estava sentindo falta de uma palavra de carinho do querido amigo. No dia seguinte, liguei para o Carlos e contei o ocorrido. O Carlos mandou ao Castello umas das cartas mais bonitas que já li na minha vida.
Quando o Drummond completou oitenta anos, foi a vez do Castello homenageá-lo, publicando na sua coluna um dos textos mais bonitos e brilhantes que já havia escrito.
Correu o boato da morte do Juscelino. Eu escrevi ao Carlos:

“Brasília, 10 de agosto de 1976
Carlos, muito querido:
Foi uma loucura.
No sábado à tarde, eu estava em casa deitada, descansando, quando os dois telefones tocaram ao mesmo tempo. Eram jornalistas querendo saber se era verdade que o Juscelino havia morrido.
A notícia é que ele havia morrido num acidente na estrada São Paulo – Rio.
Eu tinha certeza que ele estava na Fazendinha porque eu também iria com ele, Déa, Carlos Murilo e mais alguns amigos. E lá não tem telefone.
Pedi aos jornalistas que não transmitissem a notícia, pois eu tinha certeza que era boato. Ele estava na Fazenda e eu ia tentar tirar a limpo o que teria acontecido.
E os telefones tilintavam. Mais jornalistas, Sarah, do Rio, as filhas, uma loucura.
Tive a idéia de ligar para um posto de gasolina próximo à estrada que vai para a Fazendinha JK.
Atendeu-me um garoto chamado Marquinhos e eu implorei a ele que pegasse um táxi e fosse à Fazenda saber o que havia acontecido e, depois, me ligasse.
E os telefones não paravam.
Quando, vinte e poucos minutos depois, o Marquinhos ligou dizendo que não havia acontecido nada, que encontrou o Presidente assustado e os carros da TV. Globo e da TV. Manchete lá, caí na maior choradeira e não conseguia parar.
Quando atendia ao telefone com aquela voz de choro e dizia que, graças a Deus, não havia acontecido nada, o jornalista, do outro lado, se assustava: Então, por quê você está chorando tanto?
Eu: De alegria, de alívio.
Quanta loucura, meu Deus!
Quando é que este país vai tomar juízo e esses bandidos vão parar de fazer a gente sofrer?
Fui para a Fazenda com um amigo meu e, quando bati à porta, ouvi o Juscelino dizer: ‘Agora é a Vera!’
Achei-o muito triste e desapontado. Acho que ele está pressentindo alguma coisa. Boa não deve ser.
Beijos, meu querido.
Faça um carinho na Dolores, por mim.

Vera

Quinze dias após o boato, morreu o Juscelino, exatamente da forma que previram: Acidente na estrada São Paulo, Rio.
No dia seguinte ao boato, ele viajou para Belo Horizonte. Fomos levá-lo ao aeroporto e, no jornal Correio Braziliense havia um conto meu, que ele leu no avião. E me escreveu uma linda carta.
Três dias antes do Juscelino morrer, fomos, juntamente com o Olavo Drummond, ao Hotel Eron. Ele ficou na maior felicidade de ver, lá do alto, a Bras´lia que ele tanto amava. Já tarde, mais de duas horas da manhã, os dois foram me  levar em casa e  o Juscelino disse-me: “Você ainda não respondeu à minha última carta”.
Respondi: “Calma, meu amigo. Aquela está bonita demais, vou precisar me inspirar para responder. Mas não vou demorar, não. Nos próximos dias, responderei”.
Quando, três dias depois, ele morreu, fiquei magoada de não Ter cumprido a promessa. Mas respondi, assim mesmo. Só para me desabafar. E remeti a todos os meus amigos que me mandaram mensagens de carinho pela morte do querido amigo. A Cristina tavares, na época jornalista, publicou-a no jornal. Depois, foi publicada em vários jornais do Brasil, e na revista O CruzeiroI, na coluna do David Nasser.
Como não me sentia em condições de escrever uma linha sequer, me sentia totalmente esvaziada, remeti ao Carlos cópias da carta do Juscelino, e da minha.
O Carlos me mandou um cartão, emocionado: “Vera, querida: A última carta de Juscelino para você, e a admirável ‘resposta’ do seu coração a ele, tocaram-me fundo. Obrigado, amiga! Carinhosamente, Carlos 01/09/76”

Em 1964, em plena ditadura, respondendo a inquérito e com inúmeros amigos presos, sumidos ou asilados, ameaçada de demissão no MEC, onde era Inspetora de Ensino, vieram para a minha companhia três sobrinhos, com um, três e quatro anos, Leonardo, Celso e Altino. São filhos de um irmão que havia se separado da mulher.
Quando, em 1977, um deles, o mais velho, Altino, já com dezessete anos, decidiu ir morar com a mãe, escrevi ao Carlos e devo ter deixado transparecer o meu desapontamento.
Ele me mandou esta linda carta:

“Rio, 6 de novembro 1977
Vera, querida:
Estou passeando por terras distantes em companhia de você, nas páginas do livro que me mandou. E nem sinto a bambeza das pernas, ao acompanhar seus passos lépidos e ouvir suas palavras amigas. Então o rapaz que você criou já não está mais com você? Mas são assim as aves adultas: praticam a arte do vôo. Um dia elas voltam, e tornam a distanciar-se e tornam a voltar.  Você modelou um ser humano; é o seu orgulho legítimo. Deu-lhe sentimento de liberdade e preparou-o para isto. Nunca o perderá no coração, fique certa.
Parabéns pela casa nova, que desejo fonte de alegria e paz para a futura moradora. Uma casa cercada de verde: haverá coisa mais linda?
Num beijo, meu agradecimento e todo o bem-querer
do
Carlos”

Eu me havia mudado para uma chácara que já era bonita, e que o Zanine reformou e ficou mais bonita, ainda.
Insistia com o Carlos e com a Dolores para virem passar uns dias comigo. Eu mandaria o motorista buscá-los, eles viriam parando pelo caminho e chegariam aqui descansados, e felizes com o passeio. Ele me escreveu:

“Rio, 30 de agosto, 1978
Querida Vera:
Viva a casa nova, com cara de casa, gosto de casa, cheiro (sem figueiredice) de casa! Pelas fotos e pelas palavras de sua carta, imagino a delícia moral que é viver num ambiente assim. Com a natureza fazendo esquecer a burrice ou a safanagem das pessoas. Obrigado, por mim e por Dolores, satisfeitos com o seu convite. Um dia, quem sabe? aí estaremos para curtir as delícias virgilianas em sua companhia.
Abraço carinhoso do Carlos”

Em 5 de janeiro de 1980, carinhosamente, elogia o meu segundo livro, de contos:

Vera, querida:
Beleza de livro “ A Solidão dos Outros”.
Sentimento humano, compreensão da vida de cada um, latejando em cada conto.
Você alcançou a expressão límpida que é o ideal da escrita literária. Parabéns. E o abraço agradecido e comovido de Dolores
e do Carlos”

Enviei-lhe mais doces de casca de limão e de leite. E ele me escreveu:

“Rio, 21-6-82
Vera querida:
De você só me vêm coisas boas, palavras de carinho e doces perfeitos.
Que bom ter uma amiga assim, gostar de uma pessoa assim e contar com o seu afeto! Puxa, Vera, a gente ganha ânimo de continuar vivendo no meio surrealista deste Brasil de milicos e sacanas... Obrigado por tudo, amiga!
De Dolores e de mim vai o melhor abraço para você.
Carlos
de boca de doce- de- leite”

Carlos me deu uma esperança muito vaga de vir passar o seu aniversário comigo. Fiquei radiante. Mais uma vez, ele não veio. Era muito preguiçoso para viajar. Mandou esta carta, linda:

“Rio, 11 de agosto de 1982
Vera muito querida:
Só agora, depois do seu telefonema, da sua carta e da esplêndida Rainha Nefertiti negra na claridade do marfim que você mandou vir da Tanzânia para este seu amigo, é que comecei a realizar a idéia dos meus oitenta anos, a entrar dentro deles, a me sentir um verdadeiro ancião. Que sensação estranha, essa! Felizmente amenizada não só pelo seu incomparável doce-de-leite como pela quentura de suas palavras, pela certeza de encontrar em você um coração solidário, batendo no mesmo ritmo de fidelidade e ternura.
Obrigado, Vera, mas obrigado mesmo, por tudo que significa para mim  esse desabrochar de carinho em torno da calva e alérgica figura de um octogenário. Não posso disfarçar que chegar a essa idade é bastante inconfortável, pois a natureza vai dobrando e reduzindo a titica as energias da mocidade e da madureza, mas evidentemente me consola muito verificar que minha velhice desperta efusões generosas como as de você e, portanto, não se frustrou em indiferença e solidão. Estou me sentindo muito aconchegado, Vera, muito mimado, muito criancinha rósea e rechonchuda, do alto dos meus oitenta aninhos! Meu Deus, você e sua mágica, hein?
O convite para passar o dia “complicado” na delícia de sua casa (que, pelas fotos, vejo não ser uma casa, e sim o próprio Paraíso em edificação moderna) é o que eu posso chamar de mais gostoso, delicado e comovedor. Bem que eu gostaria de aceitá-lo, pois não há dúvida que se trata de solução ideal para o caso. Sucede, porém, que Maria Julieta deseja estar a meu lado na ocasião e não pode ausentar-se do batente em período de aulas (o Centro de Estudos Brasileiros, de Buenos Aires, tem mais de mil alunos, e é ela quem dirige esse pequeno mundo). Então, o jeito é o velhinho se mandar para a Argentina e lá passar sossegado o tal ‘cumpleaños’.
Gratidão. É a palavra que sai de mim tão espontânea e aberta, no rumo de você e do seu santo lado esquerdo. Gratidão por me sentir amado e pensado tão lindamente por você. E Dolores participa dessa gratidão, solidária comigo.
Um beijo, Vera, e nele toda a alma do
Carlos”

Fui ao Senado participar da homenagem ao meu querido amigo Gustavo Capanema. Escrevi ao Carlos, contando que o seu nome havia sido citado, várias vezes, pelo trabalho realizado no Ministério da Educação, quando chefe de gabinete do Capanema. E da alegria de saber que o nosso amigo não foi esquecido. Ele me respondeu:

“Rio, 27 de junho de 1985
Querida Vera:
O Senador Fernando Henrique Cardoso (com quem aliás simpatizo intelectual e politicamente) deve estar muito ocupado com a sua candidatura a Prefeito de São Paulo, pois até agora não me mandou os textos dos discursos pronunciados no Senado em homenagem ao Capanema, conforme prometera a você. De qualquer modo, a sua carta já me deu prazer, pois mostrou que o meu velho e querido amigo não ficou esquecido de todo. Digo de todo porque o Ministério da Educação, onde ele labutou 11 anos e fez tudo aquilo que ainda hoje comprova  a sua alta qualidade de homem público, nem sequer se pronunciou por ocasião do seu falecimento. Incrível, não?
Que bom saber que a Ciclotímica chegou à Inglaterra e vai comover os leitores de lá. Parabéns pela merecida vitória.
Beijo carinhoso do, Carlos
Vera, minha querida,
muito obrigada pela linda lembrança. Gostei muito. Você é um encanto, um amor.
Um beijo e o coração da
Dolores”

Em 9 de setembro, ele escreveu:

Querida Vera:
Das notícias que você me mandou em sua carta, destaco uma: o livro de memórias. Fico todo assanhado na expectativa de ler, em prosa cativante, as muitas coisas alegres ou tristes, mas sempre de interesse, que você tem a contar, como observadora alerta da vida.
Vá escrevendo e não pare, pois quando a gente começa a remexer no passado descobre como ele é vivo e rico de surpresas.
Dolores lhe manda um abraço apertado. E eu, um beijo carinhoso.
Carlos

Ótima a evocação de JK”.

Fiz um pulôver para o Carlos, de lã anti-alérgica. Ele escolheu o verde folha e ficou lindo. Quando foi à reunião na casa do Plínio Doyle e contou que eu mesma havia tecido o suéter, o Pedro Nava, também meu querido amigo, ficou todo enciumado. A Nieta, sua esposa, ligou-me contando. Pedi que me mandasse as medidas do Nava e a cor de sua predileção, que eu iria tecer um pulôver para ele, também. Quase morri de arrependimento quando comecei a colocar os pontos na agulha. Era três vezes a medida do Carlos. Mesmo assim, fiz, com o maior carinho.
O Carlos, parecendo um menino feliz, escreveu-me:

Rio, 14 de maio, 1986
Vera, querida:
estou me sentindo o elegante mais requintado deste inverno, graças ao seu adorável presente.  Espero a qualquer momento sair no Zózimo ou no Swan, devidamente equipado para o inverno elegante.
Muito agradecido mesmo, querida Vera.
O coração e as saudades
do
Carlos

Escrevi-lhe:

“Carlos, sempre querido:
Que bom você ter gostado do pulôver. É assim: quando a barra pesa, começo a fazer tricô para descarregar os nervos. Nas enchentes, a cada cena daquelas que apareciam na televisão de boi morto boiando, crianças aos prantos e em pânico, casas despencando, eu pegava as agulhas e a lã e, se não parasse a tempo, acabaria fazendo uma cortina inteira.
Na seca do nordeste, naquela desgraceira toda, tome tricô, mais crochê, mais blusa.
O seu pulôver, no entanto, foi feito num momento de muita paz e muita ternura, com carinho e capricho.
É como se estivesse tecendo um abraço afetuoso, para aquecer um peito amigo e querido que abriga o coração mais generoso do mundo. E o mais amado.
Beijos, meus dois queridos. E o amor certo, seguro e cada vez maior de
Vera

“Rio, 12 de setembro, 1986
Vera querida:
A Segunda leitura de Ensolarando Sombras reforçou a impressão da primeira e me fez amar ainda mais o seu livro. A palavra impressa deu maior relevo e cor aos traços. E senti plenamente a formidável força vital que se irradia de você: nos bons e piores momentos, ela gera confiança, otimismo, alegria de viver.
Obrigado, amiga, pelas boas coisas que diz de mim. Eu mereço? Tenho dúvidas, e sei como o seu coração está encharcado de ternura e generosidade.
Beijos e carinhos de Dolores e do
Carlos”

O que eu disse do Carlos no meu livro de memórias, Ensolarando Sombras, foi o seguinte:
“As lendas sobre o Carlos Drummond eram incríveis. Uns diziam que ele não gostava de conversar, nem responder cartas. Outros, que passavam por ele na rua e ele nem respondia ao cumprimento, estava olhando além da pessoa, olhando o dia seguinte.
Quando o conheci, vi que tudo era mentira. Era uma criatura normal, como toda a gente. Contava casos, ouvia histórias minhas e do Darcy, ria, era engraçado, irônico, sutil, brilhante nas mínimas observações.
Quando, de volta a Brasília, mandei-lhe a primeira carta, contando o quanto me havia feito feliz o encontro daquela tarde, ele me respondeu, quase em seguida e, daí em diante, não paramos mais.
Às vezes eu me sentia tão atolada nos meus problemas que, sem querer, deixava transparecer uma ponta de mágoa, de amargura. A resposta era cheia de carinho e conforto, na linguagem mais poética possível.
Eu ficava pensando: Meu Deus, uma criatura com esta carga de sensibilidade que o Carlos conduz, deve sofrer triplicado neste mundo cão. E quem será que o consola? Primeiro, não deve fazê-lo tão bem quanto ele faz, porque ninguém tem a sua competência. Segundo, ele deve guardar no fundo da alma as suas tristezas que, depois, saem através dos poemas. Só se ele se consola lendo os próprios poemas. Pode ser. Eu me consolaria, se tivesse talento para escrever o que ele escreve.
Às vezes chegava em casa cansada, chateada, cheia de problemas. E encontrava uma carta do Carlos. Era o bastante para me aliviar, para concluir, por comparação, que as pessoas e coisas que me incomodavam e feriam eram muito pequeninas, sem grandeza.
O Carlos não tem idéia do quanto me ajudou na vida”.