A vida segue, o blog também, com ou sem coluna. Dedico esta postagem a Vera Brant, uma amiga querida, uma pessoa especial, quem teve ou tem vínculos fortes, tecidos pelo afeto, com pessoas tão especiais e tão importantes como JK, Darcy Ribeiro, Drummond, Castellinho, Niemeyer, tantos outros. Esta semana, eu e um grupo de amigos e amigas comuns recebemos dela uma mensagem por email, que transcrevo, juntamente com o texto que nos enviou, um belo artigo sobre Drummond, contendo parte da correspondência que ela trocou com ele. Por tudo de belo ali revelado, compartilho com vocês, embora o artigo de Vera esteja também no site dela: www.verabrant.com.br. Uma dádiva.
"
Meus queridos amigos
No momento em que o nosso querido Drummond é homenageado
pela FLIP, em Paraty, fico me lembrando da carinha de descrença dele quando eu
disse que, daqui a cem anos, de todos nós que habitamos o Planeta Terra, só ele
e o Oscar Niemeyer seriam
lembrados. O Darcy concordou comigo.
Em outubro de 2002, escrevi um artigo em sua homenagem, a
pedido do Almyr
Gajardoni, para a Revista LEITURA, publicação cultural da
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
Encontrei um modo de participar das homenagens ao meu
querido amigo, encaminhando a vocês o artigo.
Vera".
O artigo:
DRUMMOND
Vera
Brant
Conheci Carlos Drummond de Andrade no
final de 1974, visitando o Darcy Ribeiro, que havia sido operado do pulmão, no
Rio da Janeiro.
Já se recuperando da cirurgia, o Darcy,
que regressara do exílio para a retirada do câncer no pulmão direito, estava
feliz com a visita do querido amigo.
O papo, delicioso, durou umas três
horas e eu, encantada de conhecer pessoalmente o mais admirado de todos os
meus poetas preferidos, contava casos
divertidos para distrair o Darcy e agradar o Carlos.
O Cyro dos Anjos e vários outros
amigos do poeta me haviam dito que ele
era muito fechado, falava pouco, era muito sério. Mas, não sei se para distrair
o Darcy, que estava meio tristonho, ele contou casos muito engraçados.
Lembro-me de haver contado uma história
do Abgar Renault: Eu ia ser operada e precisava fazer uma transfusão de sangue.
Contei a Abgar que me disse: “Verinha, transfusão de sangue é a coisa mais
perigosa que existe”.
Eu, espantada, perguntei:
– Por quê, Abgar?
– Porque você não sabe o nível
intelectual do doador.
O Darcy comentou: “Se é assim, estou
perdido, já devo estar ignorante. Só tomei sangue de piau”.
Contei ao Carlos que o Darcy me havia
perguntado, logo que chegou do exílio: “Você não acha terrível eu ter que ficar
só com um pulmão?”
E que eu havia dito: “Não acho, não. Se
você fosse jogador de futebol, eu acharia. Mas, para quê intelectual precisa de
dois pulmões? Para ler e escrever, um só basta”.
A mãe do Darcy, Dona Fininha, chegou ao
quarto e ele, rapidamente, vestiu a camisa que havia tirado por causa do calor.
O Carlos perguntou a razão daquele gesto e o Darcy respondeu:
– Ela pensa que eu fui operada do
estômago. Se vir o estrago que fizeram com as minhas costas, vai desmaiar.
O Darcy contou ao Carlos que o
Juscelino pretendeu visitá-lo mas o agente do DOPS que ficava na porta do seu
quarto, não permitiu.
Lembrei-me de contar-lhes a luta que
havia sido levar o Juscelino a fazer as pazes com a cidade que criou. Além da
proibição dos militares, havia o trauma pelo fato de, meses antes, o pequeno
avião que o conduzia e que estava com vazamento de óleo, ter sido proibido de
descer no aeroporto de Brasília. O piloto teve que fazer um pouso arriscado,
numa fazenda próxima, com uma pista mínima.
A partir dessa tarde, fiquei grande
amiga do Drummond. E passamos a nos corresponder, constantemente.
E nos falávamos, todos os sábados, ao
telefone.
Remeti-lhe o original de um livro, “A Ciclotímica”, que eu
havia lido para o Darcy no hospital e que havia sido um dos temas da nossa
conversa naquela tarde. Na realidade, não era bem um livro. Eu tinha a mania de
escrever, para me desafogar, e depois jogava tudo fora. Mas aquela história de
uma menina dos treze aos quinze anos, trombando na insensibilidade e na
incompreensão humana dos adultos, não sei por quê razão, mantive comigo. E,
quando fui fazer companhia ao Darcy no Hospital, levei para ler para ele,
tentando distraí-lo um pouco.
Ele gostou tanto que mostrou ao Hélio
Pellegrino e ao Otto Lara Resende, que
elogiaram o livro. E pediu-me que remetesse uma cópia ao Carlos, quando
chegasse a Brasília.
Em resposta à carta que acompanhava o
livro, o Carlos escreveu:
“Vera: Depois do nosso conhecimento pessoal, naquele papo
ameno em torno da poltrona do Darcy convalescente, julgo-me no direito de estranhar o “senhor” cerimonioso de sua
carta. Esta foi afetuosa e no clima daquele dia, mas o “senhor”, Vera, me
coloca assim numa situação de monumento tombado e é meio inibitivo, sabe?
Não importa.
Gostei muito de ler “A Ciclotímica”, não só por ser um esquizotímico, sempre
curioso e até guloso das manifestações opostas, que me despertam uma saudável
inveja, como ainda porque você consegue realmente dar expressão literária ao
temperamento ciclotímico, e então a coisa assume um ar de coisa viva, palpitante,
envolvente, que cativa o leitor. Seu estilo direto, objetivo, leal, desconhece
a sofisticação”.
Termina a carta,
assim: “Escrevendo ao Darcy, não deixe de dizer-lhe que ele continua presente
no meu afeto, e que terei a maior alegria quando ele estiver reintegrado em
nossa vida brasileira, em que mais precisamos dele que ele de nós. E, para
você, o abraço amigo e carinhoso do, Carlos – 19/02/75”.
Fiquei na maior felicidade. Quando
contei ao Juscelino que havia conhecido o Carlos, no Rio, e recebido dele uma
linda carta, ele comentou com o nosso pequeno grupo de amigos:
– Estamos perdidos! A Vera, agora, só
vai querer saber do Drummond. Tudo o que dissermos, de agora em diante, ela vai
achar burro!
Respondi a carta do Carlos, dizendo-lhe
do meu contentamento, contando umas histórias e anexando cópia de uma carta que
havia remetido ao Darcy.
Ele respondeu-me:
“Rio, 10 de março de 1975.
Vera, amiga:
Ora muito bem.
Estamos amigos. E não foi preciso recorrer a intermediários. Não foi melhor
assim? O encontro, em volta do Darcy, criou a boa relação, que as cartas
consolidam.
Por falar em
carta, não preciso dizer que me tocou sua prova de confiança. Junto restituo a
cópia, que deve ficar em seu poder, e não no meu arquivo. É um documento
admirável, mostrando a mulher valente e lúcida que você é, no controle dos seus
sentimentos. Mas, pergunto – não indicará também um conceito talvez deformador
da natureza da relação carnal? A Bíblia chama-a de ‘conhecimento’, e eu acho
certo este nome. O conhecimento físico completa a imagem que temos do próximo.
Ligá-lo a um estado de paixão é dar-lhe uma força que ele não tem em si. Já não
falando no aspecto de necessidade biológica, que o legitima e lhe tira a
sacralidade. Em suma, ou em princípio: não entendo porque o sexo, realizado com
uma visão clara das coisas, corrompa a amizade. Mas este é um assunto que
poderia ser discutido até o infinito, e eu não tenho paciência para discutir.
Apenas manifestei o meu ponto de vista. Um dia, aqui no Rio, poderemos
conversar a respeito. Sem perigo nenhum, ouviu? Sou um respeitável senhor de 70
e tantos anos...
Escreva o livro
que você pretende e, conte tudo. Para contar só o superficial ou o aveludado,
realmente não vale a pena escrever. Já temos um número excessivo de memorialistas
que retocam e falsificam a vida. E você, com o seu talento, pode nos dar um
retrato precioso de costumes e psicologia social e humana, do tempo que está
vivendo. O que há de melhor nos livros do Nava, ao lado da criação literária, é
a coragem.
Um grande abraço,
com o carinho, do Carlos”.
Foram treze anos de correspondência,
conversas ao telefone e, de vez em quando, uma ida ao Rio para um papo
delicioso. Selecionarei algumas cartas, dele e minhas, para dar uma idéia da
troca de ternura entre dois amigos que se amaram muito.
12.05.75
“Vera, amiga: Foi
bom você me ter dado o endereço do nosso Darcy. Eu tinha mesmo a intenção de
escrever a ele, o que acabo de fazer. No dia da partida, ele quis vir aqui em
casa para se despedir. Eu estava de saída para as obrigações do dia a dia e
prometi ir ao seu apartamento, quando voltasse do centro. Mas o trânsito estava
para lá de enguiçado, e quando cheguei a Sousa Lima, o nosso homem já se
mandara para o Galeão. Fiquei triste e chateado, pois por minha culpa não lhe
dei o abraço de despedida – esse abraço que não faz somente parte do ritual, em
alguns casos é um ato do coração, com ternura”.
E termina, assim:
“Bem, não respondi sua carta anterior porque... sou ruim de correspondência,
sabe? Não se aborreça se no futuro eu atrasar respostas ou conservá-las em
estado de carta mental. Leve tudo isso à conta da minha condição de
setuagenário e continue minha amiga, como eu me declaro de você e do seu jeito
franco e desabusado, que é convite a gostar ou não gostar, de saída. Um beijo,
Vera. Carlos”.
O Juscelino cismou de candidatar-se à
Academia Brasileira de Letras. Tentei demovê-lo. Disse-lhe que o seu
compromisso com as brasileiros era político. Se ele ganhasse, o que eu achava
muito difícil porque todas as pessoas naquela época eram extremamente medrosas,
os militares iriam dizer que permitiram. Politicamente, seria péssimo. Mas ele
queria, porque queria ser eleito alguma coisa. Cheguei a perguntar-lhe: Não
serve, síndico do seu prédio? Mas ele não estava para brincadeiras. Resultado:
Perdeu, e ficou arrasado. Carlos e eu havíamos comentado, pelo telefone, e
nenhum de nós dois acreditava na vitória.
Escrevi ao Carlos:
“28.10.75- Carlos, meu querido:
Tentei, de todas
as maneiras, evitar o desastre. Primeiro, argumentando com o Juscelino para que
ele desistisse de sua candidatura à Academia. Inútil. Ele queria porque queria
ser candidato.
Pedi ao Otto que
me ajudasse. Ele me respondeu: “A sua carta ao J.K. é um berro à moda do seu
temperamento. Generosa, solidária. Você tem razão, mas aqui baixinho, entre
nós: deixe o homem se candidatar ao que quiser, ao que deixarem. Por quê não?
Ele é um homem institucional. Fez a vida e a biografia segundo as instituições.
Foi até Presidente da República- você já viu cargo mais acadêmico e
institucional? Se ele se candidatar a segundo corneteiro da banda Santa Cecília
de Brumadinho deixe, quê que tem?”
Achei muita graça
mas continuei lutando. Não adiantou nada. E o resultado foi o que vimos.
Quando me lembro
da admiração que sentia pelo Guimarães Rosa e o ódio que tive quando ele morreu
de Academia, chego a me consolar com a derrota do Juscelino.
A burrice dos
outros até que nos tem ajudado. A nossa inteligência é que está em
curto-circuito e não percebe isto.
Naquela noite,
quando saí da casa da Maria Estela, tendo deixado o Juscelino naquele estado de
tristeza de soldado ferido voltando da guerra perdida, escrevi-lhe uma enorme
carta: “Você, com este temperamento agitado, não suportaria ficar naquele papo
furado de gente que fica olhando para trás, pensando para trás, recordando o
tempo que era considerado gênio, um elogiando a obra do outro, cada qual
querendo parecer mais culto, ninguém preocupado com a atual situação do país, a
miséria geral, com a amargura de cada um de nós, nem fazendo nada para tentar
diminuí-la”.
E terminei a
carta, assim: “Virão outros amanhãs, outras auroras. Auroras que trarão dias
limpos e puros que, visto de acordo com a consciência de cada um, parecerão
mais limpos e mais puros, ainda. Que Deus lhe dê as auroras e os azuis que
tanto merece”.
Êta
humanidadezinha mixuruca, hein, Carlos?
Vou tentar
encontrar um bom livro de ficção para ler. Não estou suportando a realidade.
Estou no maior enjôo.
Só gosto de você e
mais meia dúzia de gente.
Beijos, meu
querido. Até breve.
Vera”
E ele mandou-me esta bela carta:
10.12.75
Vera, querida:
Também não foi por
falta de saudade e bem-querer que não lhe escrevi mais. Nem por malandragem. O
que se passa comigo, e me deixa triste, é que a obrigação jornalística de
escrever (faço isso há 50 anos, com intervalo de 10) me rouba a alegria de
escrever pelo gosto de escrever, às pessoas do meu carinho. Falta de tempo,
propriamente, não é, nem eu passo a semana inteira rabiscando três croniquinhas
e mais algum trabalho avulso, de encomenda. É um bloqueio diante do papel, da
caneta, da máquina, entende? Saber-me obrigado a escrever para o jornal o resto
da vida, como profissional autônomo (boa piada! Autônomo!) me faz abominar a
escrita, o alfabeto, o Correio. Me compreenda e perdoe.
Bem, seu livro
está aqui me fazendo companhia; se o reabro, é você que está a meu lado, com
toda a vivacidade, a inteireza, a rude e gostosa maneira de enxergar e julgar
as coisas. Mas sinto nele, mais que desabafo existencial, o vigor de uma
expressão literária que tanto poderia manifestar-se no caso da Ciclotímica, em
feliz conjugação de tema e de forma nervosa de desenvolvê-lo, como em outros
conteúdos humanos, observados. Você tinha necessidade de contar essa história,
compreendo. E, ao contá-la, provou a sua força fixadora de tipos e situações,
de criadora de atmosferas tensas e empolgantes – recriadora de vida, em suma.
Não lhe parece que a novela abre caminho para outras realizações, já agora mais
amplas, mais livres de condicionamentos individuais, porque foi o próprio
mecanismo da ficção que você descobriu, ao penetrar no terreno da experiência
vivida?
Pense nisso, minha
querida, e passeie a vista em redor, assuntando o material imenso que Brasília,
com seus novos tipos de convivência, ou a nossa Minas enroladíssima, fonte
inesgotável de recalques e matreirices, oferecem a quem sabe manejar a
linguagem escrita. É uma provocação que lhe faço, com intenção de assanhá-la. E
nem sequer sou original, pois o Edgard Mata Machado, por outras palavras, sugeriu
a mesma coisa.
Achei uma delícia
a sua carta ao Juscelino, embora eu veja de outro modo o jeito dele,
candidatando-se à Academia e expondo-se à derrota. Compreendo seu desejo de
penetrar naquele estranho recinto, ou em qualquer outro, já que lhe estão
vedadas as portas naturais abertas ao temperamento político. Além do mais, ele
tem o gosto da aventura, e não é aventureiro quem só se anima a jogar na certa.
Mas ouvi dizer que opositores dele, lá dentro, estão procurando convencê-lo a
se candidatar de novo, mostrando-se arrependidos do voto contrário. Não é uma
graça? Outra boa piada, a Academia.
Bem, não há outro
jeito senão desejar a você, e ao seu povinho, essa coisa completamente sem
sentido, chamada Feliz Natal, feliz Ano Novo. Com esperança de alguma coisa
melhorar, em alguma parte do mundo e até aqui.
Um beijo do Carlos
Quando, em maio de 1976, o Carlos
Castello Branco perdeu o seu filho, Rodrigo, eu ia todas as tardes para o seu
apartamento, tentar consolar o casal. Numa noite, o Castello estava sentado
numa almofada lendo a correspondência de pêsames. E começou a falar do
Drummond: da amizade que os uniu e da briga que tiveram, por um mal entendido.
O Castello disse na sua coluna algo que o Carlos não gostou e revidou, também
no jornal.
Pedi: Deixe-me ver o telegrama do
Carlos.
– Não existe nada do Carlos,
respondeu-me.
Entendi tudo. Ele estava sentindo falta
de uma palavra de carinho do querido amigo. No dia seguinte, liguei para o
Carlos e contei o ocorrido. O Carlos mandou ao Castello umas das cartas mais
bonitas que já li na minha vida.
Quando o Drummond completou oitenta
anos, foi a vez do Castello homenageá-lo, publicando na sua coluna um dos
textos mais bonitos e brilhantes que já havia escrito.
Correu o boato da morte do Juscelino.
Eu escrevi ao Carlos:
“Brasília, 10 de
agosto de 1976
Carlos, muito
querido:
Foi uma loucura.
No sábado à tarde,
eu estava em casa deitada, descansando, quando os dois telefones tocaram ao
mesmo tempo. Eram jornalistas querendo saber se era verdade que o Juscelino
havia morrido.
A notícia é que
ele havia morrido num acidente na estrada São Paulo – Rio.
Eu tinha certeza
que ele estava na Fazendinha porque eu também iria com ele, Déa, Carlos Murilo
e mais alguns amigos. E lá não tem telefone.
Pedi aos
jornalistas que não transmitissem a notícia, pois eu tinha certeza que era
boato. Ele estava na Fazenda e eu ia tentar tirar a limpo o que teria
acontecido.
E os telefones
tilintavam. Mais jornalistas, Sarah, do Rio, as filhas, uma loucura.
Tive a idéia de
ligar para um posto de gasolina próximo à estrada que vai para a Fazendinha JK.
Atendeu-me um
garoto chamado Marquinhos e eu implorei a ele que pegasse um táxi e fosse à
Fazenda saber o que havia acontecido e, depois, me ligasse.
E os telefones não
paravam.
Quando, vinte e
poucos minutos depois, o Marquinhos ligou dizendo que não havia acontecido
nada, que encontrou o Presidente assustado e os carros da TV. Globo e da TV.
Manchete lá, caí na maior choradeira e não conseguia parar.
Quando atendia ao
telefone com aquela voz de choro e dizia que, graças a Deus, não havia
acontecido nada, o jornalista, do outro lado, se assustava: Então, por quê você
está chorando tanto?
Eu: De alegria, de
alívio.
Quanta loucura,
meu Deus!
Quando é que este
país vai tomar juízo e esses bandidos vão parar de fazer a gente sofrer?
Fui para a Fazenda
com um amigo meu e, quando bati à porta, ouvi o Juscelino dizer: ‘Agora é a
Vera!’
Achei-o muito
triste e desapontado. Acho que ele está pressentindo alguma coisa. Boa não deve
ser.
Beijos, meu querido.
Faça um carinho na
Dolores, por mim.
Vera
Quinze dias após o boato, morreu o
Juscelino, exatamente da forma que previram: Acidente na estrada São Paulo,
Rio.
No dia seguinte ao boato, ele viajou
para Belo Horizonte. Fomos levá-lo ao aeroporto e, no jornal Correio Braziliense havia um conto meu,
que ele leu no avião. E me escreveu uma linda carta.
Três dias antes do Juscelino morrer,
fomos, juntamente com o Olavo Drummond, ao Hotel Eron. Ele ficou na maior
felicidade de ver, lá do alto, a Bras´lia que ele tanto amava. Já tarde, mais
de duas horas da manhã, os dois foram me
levar em casa e o Juscelino
disse-me: “Você ainda não respondeu à minha última carta”.
Respondi: “Calma, meu amigo. Aquela
está bonita demais, vou precisar me inspirar para responder. Mas não vou
demorar, não. Nos próximos dias, responderei”.
Quando, três dias depois, ele morreu,
fiquei magoada de não Ter cumprido a promessa. Mas respondi, assim mesmo. Só
para me desabafar. E remeti a todos os meus amigos que me mandaram mensagens de
carinho pela morte do querido amigo. A Cristina tavares, na época jornalista,
publicou-a no jornal. Depois, foi publicada em vários jornais do Brasil, e na
revista O CruzeiroI, na coluna do David Nasser.
Como não me sentia em condições de
escrever uma linha sequer, me sentia totalmente esvaziada, remeti ao Carlos
cópias da carta do Juscelino, e da minha.
O Carlos me mandou um cartão,
emocionado: “Vera, querida: A última
carta de Juscelino para você, e a admirável ‘resposta’ do seu coração a ele,
tocaram-me fundo. Obrigado, amiga! Carinhosamente, Carlos 01/09/76”
Em 1964, em plena ditadura, respondendo
a inquérito e com inúmeros amigos presos, sumidos ou asilados, ameaçada de
demissão no MEC, onde era Inspetora de Ensino, vieram para a minha companhia três
sobrinhos, com um, três e quatro anos, Leonardo, Celso e Altino. São filhos de
um irmão que havia se separado da mulher.
Quando, em 1977, um deles, o mais
velho, Altino, já com dezessete anos, decidiu ir morar com a mãe, escrevi ao
Carlos e devo ter deixado transparecer o meu desapontamento.
Ele me mandou esta linda carta:
“Rio, 6 de novembro 1977
Vera, querida:
Estou passeando por terras distantes em
companhia de você, nas páginas do livro que me mandou. E nem sinto a bambeza
das pernas, ao acompanhar seus passos lépidos e ouvir suas palavras amigas.
Então o rapaz que você criou já não está mais com você? Mas são assim as aves
adultas: praticam a arte do vôo. Um dia elas voltam, e tornam a distanciar-se e
tornam a voltar. Você modelou um ser
humano; é o seu orgulho legítimo. Deu-lhe sentimento de liberdade e preparou-o
para isto. Nunca o perderá no coração, fique certa.
Parabéns pela casa nova, que desejo
fonte de alegria e paz para a futura moradora. Uma casa cercada de verde:
haverá coisa mais linda?
Num beijo, meu agradecimento e todo o
bem-querer
do
Carlos”
Eu me havia mudado para uma chácara que
já era bonita, e que o Zanine reformou e ficou mais bonita, ainda.
Insistia com o Carlos e com a Dolores
para virem passar uns dias comigo. Eu mandaria o motorista buscá-los, eles
viriam parando pelo caminho e chegariam aqui descansados, e felizes com o
passeio. Ele me escreveu:
“Rio, 30 de agosto, 1978
Querida Vera:
Viva a casa nova, com cara de casa,
gosto de casa, cheiro (sem figueiredice) de casa! Pelas fotos e pelas palavras
de sua carta, imagino a delícia moral que é viver num ambiente assim. Com a
natureza fazendo esquecer a burrice ou a safanagem das pessoas. Obrigado, por
mim e por Dolores, satisfeitos com o seu convite. Um dia, quem sabe? aí estaremos
para curtir as delícias virgilianas em sua companhia.
Abraço carinhoso do Carlos”
Em 5 de janeiro de 1980,
carinhosamente, elogia o meu segundo livro, de contos:
Vera, querida:
Beleza de livro “ A Solidão dos
Outros”.
Sentimento humano, compreensão da vida
de cada um, latejando em cada conto.
Você alcançou a expressão límpida que é
o ideal da escrita literária. Parabéns. E o abraço agradecido e comovido de
Dolores
e do Carlos”
Enviei-lhe mais doces de casca de limão
e de leite. E ele me escreveu:
“Rio, 21-6-82
Vera querida:
De você só me vêm coisas boas, palavras
de carinho e doces perfeitos.
Que bom ter uma amiga assim, gostar de
uma pessoa assim e contar com o seu afeto! Puxa, Vera, a gente ganha ânimo de
continuar vivendo no meio surrealista deste Brasil de milicos e sacanas...
Obrigado por tudo, amiga!
De Dolores e de mim vai o melhor abraço
para você.
Carlos
de boca de doce- de- leite”
Carlos me deu uma esperança muito vaga
de vir passar o seu aniversário comigo. Fiquei radiante. Mais uma vez, ele não
veio. Era muito preguiçoso para viajar. Mandou esta carta, linda:
“Rio, 11 de agosto de 1982
Vera muito querida:
Só agora, depois do seu telefonema, da
sua carta e da esplêndida Rainha Nefertiti negra na claridade do marfim que
você mandou vir da Tanzânia para este seu amigo, é que comecei a realizar a
idéia dos meus oitenta anos, a entrar dentro deles, a me sentir um verdadeiro
ancião. Que sensação estranha, essa! Felizmente amenizada não só pelo seu
incomparável doce-de-leite como pela quentura de suas palavras, pela certeza de
encontrar em você um coração solidário, batendo no mesmo ritmo de fidelidade e
ternura.
Obrigado, Vera, mas obrigado mesmo, por
tudo que significa para mim esse
desabrochar de carinho em torno da calva e alérgica figura de um octogenário.
Não posso disfarçar que chegar a essa idade é bastante inconfortável, pois a
natureza vai dobrando e reduzindo a titica as energias da mocidade e da
madureza, mas evidentemente me consola muito verificar que minha velhice
desperta efusões generosas como as de você e, portanto, não se frustrou em
indiferença e solidão. Estou me sentindo muito aconchegado, Vera, muito mimado,
muito criancinha rósea e rechonchuda, do alto dos meus oitenta aninhos! Meu
Deus, você e sua mágica, hein?
O convite para passar o dia
“complicado” na delícia de sua casa (que, pelas fotos, vejo não ser uma casa, e
sim o próprio Paraíso em edificação moderna) é o que eu posso chamar de mais
gostoso, delicado e comovedor. Bem que eu gostaria de aceitá-lo, pois não há
dúvida que se trata de solução ideal para o caso. Sucede, porém, que Maria
Julieta deseja estar a meu lado na ocasião e não pode ausentar-se do batente em
período de aulas (o Centro de Estudos Brasileiros, de Buenos Aires, tem mais de
mil alunos, e é ela quem dirige esse pequeno mundo). Então, o jeito é o
velhinho se mandar para a Argentina e lá passar sossegado o tal ‘cumpleaños’.
Gratidão. É a palavra que sai de mim
tão espontânea e aberta, no rumo de você e do seu santo lado esquerdo. Gratidão
por me sentir amado e pensado tão lindamente por você. E Dolores participa
dessa gratidão, solidária comigo.
Um beijo, Vera, e nele toda a alma do
Carlos”
Fui ao Senado participar da homenagem
ao meu querido amigo Gustavo Capanema. Escrevi ao Carlos, contando que o seu
nome havia sido citado, várias vezes, pelo trabalho realizado no Ministério da
Educação, quando chefe de gabinete do Capanema. E da alegria de saber que o
nosso amigo não foi esquecido. Ele me respondeu:
“Rio, 27 de junho de 1985
Querida Vera:
O Senador Fernando Henrique Cardoso
(com quem aliás simpatizo intelectual e politicamente) deve estar muito ocupado
com a sua candidatura a Prefeito de São Paulo, pois até agora não me mandou os
textos dos discursos pronunciados no Senado em homenagem ao Capanema, conforme
prometera a você. De qualquer modo, a sua carta já me deu prazer, pois mostrou
que o meu velho e querido amigo não ficou esquecido de todo. Digo de todo
porque o Ministério da Educação, onde ele labutou 11 anos e fez tudo aquilo que
ainda hoje comprova a sua alta qualidade
de homem público, nem sequer se pronunciou por ocasião do seu falecimento.
Incrível, não?
Que bom saber que a Ciclotímica chegou
à Inglaterra e vai comover os leitores de lá. Parabéns pela merecida vitória.
Beijo carinhoso do, Carlos
Vera, minha querida,
muito obrigada pela linda lembrança.
Gostei muito. Você é um encanto, um amor.
Um beijo e o coração da
Dolores”
Em 9 de setembro, ele escreveu:
Querida Vera:
Das notícias que você me mandou em sua
carta, destaco uma: o livro de memórias. Fico todo assanhado na expectativa de
ler, em prosa cativante, as muitas coisas alegres ou tristes, mas sempre de
interesse, que você tem a contar, como observadora alerta da vida.
Vá escrevendo e não pare, pois quando a
gente começa a remexer no passado descobre como ele é vivo e rico de surpresas.
Dolores lhe manda um abraço apertado. E
eu, um beijo carinhoso.
Carlos
Ótima a evocação de JK”.
Fiz um pulôver para o Carlos, de lã
anti-alérgica. Ele escolheu o verde folha e ficou lindo. Quando foi à reunião
na casa do Plínio Doyle e contou que eu mesma havia tecido o suéter, o Pedro
Nava, também meu querido amigo, ficou todo enciumado. A Nieta, sua esposa,
ligou-me contando. Pedi que me mandasse as medidas do Nava e a cor de sua
predileção, que eu iria tecer um pulôver para ele, também. Quase morri de
arrependimento quando comecei a colocar os pontos na agulha. Era três vezes a
medida do Carlos. Mesmo assim, fiz, com o maior carinho.
O Carlos, parecendo um menino feliz,
escreveu-me:
Rio, 14 de maio, 1986
Vera, querida:
estou me sentindo o elegante mais
requintado deste inverno, graças ao seu adorável presente. Espero a qualquer momento sair no Zózimo ou
no Swan, devidamente equipado para o inverno elegante.
Muito agradecido mesmo, querida Vera.
O coração e as saudades
do
Carlos
Escrevi-lhe:
“Carlos, sempre querido:
Que bom você ter gostado do pulôver. É
assim: quando a barra pesa, começo a fazer tricô para descarregar os nervos.
Nas enchentes, a cada cena daquelas que apareciam na televisão de boi morto
boiando, crianças aos prantos e em pânico, casas despencando, eu pegava as
agulhas e a lã e, se não parasse a tempo, acabaria fazendo uma cortina inteira.
Na seca do nordeste, naquela
desgraceira toda, tome tricô, mais crochê, mais blusa.
O seu pulôver, no entanto, foi feito
num momento de muita paz e muita ternura, com carinho e capricho.
É como se estivesse tecendo um abraço
afetuoso, para aquecer um peito amigo e querido que abriga o coração mais
generoso do mundo. E o mais amado.
Beijos, meus dois queridos. E o amor
certo, seguro e cada vez maior de
Vera
“Rio, 12 de setembro, 1986
Vera querida:
A Segunda leitura de Ensolarando
Sombras reforçou a impressão da primeira e me fez amar ainda mais o seu livro.
A palavra impressa deu maior relevo e cor aos traços. E senti plenamente a
formidável força vital que se irradia de você: nos bons e piores momentos, ela
gera confiança, otimismo, alegria de viver.
Obrigado, amiga, pelas boas coisas que
diz de mim. Eu mereço? Tenho dúvidas, e sei como o seu coração está encharcado
de ternura e generosidade.
Beijos e carinhos de Dolores e do
Carlos”
O que eu disse do Carlos no meu livro
de memórias, Ensolarando Sombras, foi
o seguinte:
“As lendas sobre o Carlos Drummond eram
incríveis. Uns diziam que ele não gostava de conversar, nem responder cartas.
Outros, que passavam por ele na rua e ele nem respondia ao cumprimento, estava
olhando além da pessoa, olhando o dia seguinte.
Quando o conheci, vi que tudo era
mentira. Era uma criatura normal, como toda a gente. Contava casos, ouvia
histórias minhas e do Darcy, ria, era engraçado, irônico, sutil, brilhante nas
mínimas observações.
Quando, de volta a Brasília, mandei-lhe
a primeira carta, contando o quanto me havia feito feliz o encontro daquela
tarde, ele me respondeu, quase em seguida e, daí em diante, não paramos mais.
Às vezes eu me sentia tão atolada nos
meus problemas que, sem querer, deixava transparecer uma ponta de mágoa, de
amargura. A resposta era cheia de carinho e conforto, na linguagem mais poética
possível.
Eu ficava pensando: Meu Deus, uma
criatura com esta carga de sensibilidade que o Carlos conduz, deve sofrer
triplicado neste mundo cão. E quem será que o consola? Primeiro, não deve
fazê-lo tão bem quanto ele faz, porque ninguém tem a sua competência. Segundo,
ele deve guardar no fundo da alma as suas tristezas que, depois, saem através
dos poemas. Só se ele se consola lendo os próprios poemas. Pode ser. Eu me
consolaria, se tivesse talento para escrever o que ele escreve.
Às vezes chegava em casa cansada,
chateada, cheia de problemas. E encontrava uma carta do Carlos. Era o bastante
para me aliviar, para concluir, por comparação, que as pessoas e coisas que me
incomodavam e feriam eram muito pequeninas, sem grandeza.
O Carlos não tem idéia do quanto me
ajudou na vida”.
Só emoção.Obrigada Tereza!
ResponderExcluirObrigada. Pessoas bonitas enfeitam a vida, nao?
ExcluirSó emoção.Obrigada Tereza!
ResponderExcluirVEJA BEM
ResponderExcluir*Robson Leal Pereira
Enquanto tantos gastam desmedidamente
Comprando coisas sem importância,
Há quem não tenha onde morar
E nem ao menos o que comer.
Pessoas correm para baixo e para cima
Orgulhosas de suas vidas vazias
Querendo mais, sempre mais
Dinheiro, poder, reconhecimento
Vivendo num mundo de aparências.
Tais pessoas vivem angustiadas
E nem sabem o que é ter paz
O que é amor, sentir alegria
Não experimentaram ainda
O doce sabor da felicidade.
Há quem não tenha o que vestir
Há quem não tenha onde morar
E nem ao menos o que comer;
Mas são felizes de alma
Pois têm a maior riqueza que se pode ter:
Jesus Cristo no coração.
* Poeta, ator e dramaturgo machadense, autor dos livros:
“No Espírito do Natal”, “Garimpeiro de Letras e Versos” e “Nas Asas da Esperança”.