sexta-feira, 19 de novembro de 2010

As cicatrizes de Dilma e a banalização das memórias da tortura

Não tenho escrito aqui, por absoluta falta de tempo. As madrugadas também viraram expediente neste final de ano, com tanto a fazer na EBC. Mal tenho acompanhado a cobertura política da transição mas não poderia deixar de comentar o noticiário sobre os arquivos da ditadura relacionados com a prisão, tortura e processo judicial enfrentados pela hoje presidenta Dilma.

Vi de relance, pela TV,  que ela estava muito emocionada na reuniao do Diretório Nacional do PT. Parece que chorou. Acho que ela tem vivido emoções fortes mas estava abalado porque mexeram em suas cicatrizes. 

Em nome da liberdade de imprensa, ainda serão feitas muitas revelações sobre a atuação de Dilma na resistência á ditadura.  Em nome da liberdade de imprensa, deveriam ensinar também aos mais jovens o que foi a ditadura, quem apoiou o regime e quem o combateu, quem resistiu ao arbítrio e quem lutou pela liberdade. Isso, sim,  seria construtivo, fortaleceria o apreço pela democracia brasileira.

Os mais jovens ficarão sabendo apenas que Dilma militou num certo grupo chamado Colina e numa organização denominada Var-Palmares, gerada pela fusão do Colina com a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária).  Para entender isso, seria preciso recordar o contexto criado pela repressão, que destruindo a democracia,  não deixou a uma geração de jovens brasileiros nenhuma outra saída.

Trinta anos depois, divulga-se apenas  que ela teria "assessorado" assaltos a bancos e ações armadas, e que sob tortura,  teria mencionado nomes de companheiros, locais de "pontos" (encontros) e de aparelhos (residencias clandestinas).  As matérias publicadas sugerem, de forma evasiva, que Dilma foi  "delatora". Ela foi presa em16 de janeiro de 1970, sofrendo  torturas e sevícias brutais nos 22 dias subsequentes, com uso de choques e pau-de-arara. Contou isso em maio,  ao ser ouvida pela Justiça Militar.

Mas quem Dilma teria delatado? Nenhum dos militantes que ela teria mencionado no depoimento obtido sob tortura "caiu" logo depois de sua prisão.  Dilma "mentiu muito", e é isso mesmo que um militante de valor precisava fazer ao enfrentar o tormento da tortura:  Jogar com o tempo e com as informações de que dispunha,  calculando cada minuto na disputa temporal com o torturador, uma disputa que podia significar a vida ou a morte. A própria e a dos companheiros.  Se Dilma falou no ex-marido Claudio Galeno, como está no depoimento, sabia que ele já estava longe, no exílio. Carlos Alberto Soares Freitas foi preso e desapareceram com ele, mas isso ocorreu em 1970, um ano depois.   Os demais já haviam "caído": Helvecio Raton, Erwin Resende Duarte, Reinaldo José de Melo, Angelo Pesuti, Murilo Pesuti, José Raimundo Nahas e Maria José Nahas.  Falar em quem já estava preso ou no exílio, bem como "entregar" aparelhos que já haviam "caído" era uma tática para ganhar tempo e quem sabe algum alívio,  embora a ira dos torturadores voltasse redobrada quando descobriam ter perdido tempo com informações furadas.

Em maio de 2008, Dilma falava ao Senado como ministra quando o senador Agripino Maia recordou ter ela dito numa entrevista que, durante a tortura, teria "mentido muito".  Não iria ela mentir também aos senadores, disse Agripino, tocando nas cicatrizes de Dilma.  Ferida, ela tornou-se uma leoa e seu discurso fez Agripino encolher-se.   Veja um trecho:

"Não é possível supor que se dialogue com pau de arara ou choque elétrico. Qualquer comparação entre a ditadura militar e a democracia brasileira só pode partir de quem não dá valor à democracia brasileira - disse Dilma, que emocionou a plateia que a ouvia na ocasião. - Eu tinha 19 anos. Fiquei três anos na cadeia. E fui barbaramente torturada, senador. Qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para interrogador compromete a vida dos seus iguais. Entrega pessoas para serem mortas. Eu me orgulho muito de ter mentido, senador. Porque mentir na tortura não é fácil. Na democracia se fala a verdade. Na tortura, quem tem coragem e dignidade fala mentira. E isso, senador, faz parte e integra a minha biografia, de que tenho imenso orgulho. ".

Veja também o video desta cena, uma das primeiras, no Governo Lula, em que Dilma se destacou como ser político e não como técnica:  http://www.youtube.com/watch?v=7r3nVbYa138

Dilma é presidenta hoje, é natural que se queira saber de sua vida passada.  O país tem direito a estas informações mas devia ter direito  também às histórias completas da ditadura.

Em relação á tortura, deveríamos todos evitar a banalização, não só em relação a Dilma , mas a todos aqueles que a sofreram, lutando para que hoje tivéssemos uma democracia, estejam eles agora  no PT ou em outros partidos.

TC

3 comentários:

  1. Lendo seu texto, sinto uma grande saudade de sua coluna na antiga página 2 de O Globo. Foi um período que até compensava assinar esse jornal, somente para ler a sua coluna e a de Franklin Martins. Infelizmente vc e Franklin Martins não podem estar em vários lugares simultaneamente, não é? Mas torna-se cada vez mais urgente, necessário e imprescindível a criação de um diário nacional digno. Parabéns pelo texto. André Malhão.

    ResponderExcluir
  2. Parabéns!!!Muito lúcido seu artigo.

    ResponderExcluir
  3. Oportuno seu relato por algumas razões: durante a campanha recente vi pessoas supostamente esclarecidas e críticas fazerem coro com aqueles que criticavam Dilma pela ligação com grupos armados que assaltaram bancos (usavam um termo que me foge agora), a casa de Ademar de Barros e coisas afins. Criticavam-na por ter se colocado em situação inversa ao regime ditatorial. Agora, finda a campanha, voltam ao tema ainda sob uma ótica obtusa, controversa e espantosa até. As TVs tem se arvorado, inclusive aquelas a cabo, a ouvir carcereiros, algozes e torturadores - outro dia ressuscitaram Nini. Pergunto: há uma corrente em curso que pretende inverter a lógica do que era de fato o regime autoritário, ou seria tudo isso pura ignorância somado também a conveniencia editorial? As escolas, principalmente, deveriam já entrar neste universo, explorar e desmitificar temas conjunturais de modo a evitar que se crie no Brasil uma história paralela com força para reverter e subverter a história. A eleição de uma presidenta da Colina,VPR e VAR Palmares é uma oportunidade de ouro para restabelecer a história. Sem vícios ou torcidas, mas baseada em documentos que a Justiça, militar inclusive, finalmente disponibilizou.

    ResponderExcluir