quarta-feira, 21 de março de 2012

Seguindo a canção

Transcrevo o lindo texto que me mandou  o Beto Almeida, uma das pessoas mais coerentes e lúcidas que conheço. Era 1976, eui era uma caloura inquieta e ele um veterano que já tinha lido Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Rosa, todos. E conhecia múica e literatura como poucos. Fiquei magnetizada, entrei para o grupo Oficina, onde ele era um dos líderes. Fizemos a greve de 77, campus invadido, fomos presos e punidos, a repressão nos dispersou mas nunca nos separou.  Por tudo que lá vivemos na ditadura, nada do que ocorre na UnB nos é estranho. Beto comenta, seguindo a letra de "Coração de Estudante", os recentes trotes bárbaros.


 
Coração de estudante e os trotes sem coração na UnB
 
 
                                                                                           Me gustan los estudiantes.....
                                                                                                               Violeta Parra
 
Intitulada “Péssima lição”,  matéria de capa do Correio Brasiliense do dia 17 de março sobre os espantosos trotes que estudantes da UnB submetem os calouros, obriga a uma reflexão que, por seu histórico papel de aliado da ditadura e da repressão ao movimento estudantil, o jornal candango é inepto a realizar. Enquanto aqui se pretende sustentar uma linha de pensamento que recupera e afirma o projeto generoso da Universidade Necessária, do genial Darcy Ribeiro, o Correio nem disfarça  sua nada edificante posição editorial  contra a universidade pública brasileira, ótica em que inscreve sua crítica sem profundidade aos indefensáveis trotes.
 
Demarcado o campo, que tremenda indignação ver a foto de jovens ajoelhados diante de  veteranos a lhes derramar bebidas alcoólicas , tintas, e até choques elétricos, num atestado indigência cultural! Um vergonhoso atestado  de completo desprezo pelo patrimônio cultural que o projeto da Universidade Necessária, sempre podado, como na música de Milton e Brant, representa e resiste em busca de alcançar a plenitude, o que ainda conseguiu.
 
Ainda hoje, a maioria  de jovens que consegue ingressar na universidade pública brasileira é oriunda das camadas mais abastadas da população. O que estariam a revelar com estas suas condutas truculentas? Que uma comemoração que poderia ser sábia e reflexiva face a possibilidade de acesso ao estudo superior que a maioria não dispõe, deve ser marcada por modos de submissão, de prostração, de humilhação, de alienação, até de violência, quando  nosso país e nosso povo   -  que sustenta com recursos públicos a universidade  -  tem tremendas necessidades reprimidas, sofrimentos acumulados e direitos desprezados?
 
É da universidade que saem os dirigentes da sociedade brasileira. Única exceção foi Lula, que deu início a um processo de abertura para que jovens pobres e negros, sustentados com recursos públicos, tal como o são os jovens brancos e ricos, também encontrem um lugar no ensino superior brasileiro. O que é motivo para raivosa indignação das elites brancas, desejosas de manter para sempre a universidade como reserva de lugar para seus filhos, reproduzindo a sua ideologia, perpetuando as desigualdades sociais, entre elas a do seletivo ingresso na universidade. Só pelo atrevimento em fazer um pouco de justiça, que não altera totalmente o predomínio dos endinheirados para o ingresso na universidade pública,  Lula foi obrigado a ouvir as mais desqualificadas manifestações de rancor social difundidas pela mídia, esta também uma reserva de mercado do poder econômico e sua ideologia, já que as forças progressistas, inexplicavelmente, ainda não se animaram, não se atreveram a no mínimo reeditar o gesto audacioso de Vargas ao criar o Jornal Última Hora.
 
“Já podaram seus momentos....”
 
A foto com jovens ajoelhados diante de um nada, do vazio, da ausência absoluta de sentido, conduzidos como rebanho a uma espécie de comemoração que joga para fora baixos instintos, desagrega, decepciona, e gera montanhas de dúvidas sobre a qualidade dos cidadãos que estarão futuramente nos postos de comando das instituições da sociedade. Nem parece que passaram pela universidade brasileiros do porte de Josué de Castro, Anísio Teixeira, César Lattes, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Freire e Aziz Ab’Saber, que acaba de nos deixar, deixando-nos, todos eles, uma foto perene de insubmissão diante da mediocridade, da injustiça, da opressão intelectual, cultural e científica. Deixaram-nos uma mensagem para que jamais nos ajoelhemos diante da baixa cultura, da limitação do conhecimento, da truculência acadêmica ou não, mensagem que estes jovens deveriam conhecer desde cedo. Infelizmente, em nosso sistema educacional predomina exatamente o mecanicismo da obediência acrítica, o que também se pode observar nos meios de comunicação. Quantas horas de TV Xuxa não foram necessárias para  produzir jovens de joelhos diante de um nada, de uma ordem da insensatez e do retrocesso cultural? Justo quando chegamos aos 90 anos da Semana da Arte Moderna nos deparamos com esta cena deprimente que a foto do jornal da capital  nos mostra? Será que é para exibir esta rudimentar expressão de civilidade que muitos segmentos querem manter obstáculos para o ingresso de negros e pobres na universidade pública? Não seria o caso de se investigar a fundo que relação haverá entre estas  pavorosas cenas anti-acadêmicas e a crescente onda de violência contra moradores de rua, não raro incenerados filhos da classe média alta como aquele índio numa praça de Brasília que ainda queima o coração da cidadania?

“Desviaram seu destino.....”
 
Embora a foto possa sugerir, não há , entretanto, razões para pessimismo. Paralelamente a estes jovens ajoelhados em reverência à mediocridade, vimos chegar a notícia de catadores de material reciclável que conseguem o diploma universitário e, na própria formatura, juram continuar a luta por uma sociedade mais justa. Nada de ajoelhar! Chega-nos a notícia de mulheres que também tiveram sua fase de catadora de recicláveis e que hoje estão na presidência da Petrobrás. Exemplos de bravura, superação, de não resignação, de rebeldia diante do fatalismo ante as desigualdade social, nada disso falta ao povo brasileiro. Ele é generoso em exemplos assim.
 
Mas, talvez o que esteja faltando é uma overdose de rebeldia ao próprio movimento estudantil. Seja porque as condições políticas do país permitem, há um governo que representa as forças progressistas da sociedade,  ou seja por tudo o que o movimento estudantil já inscreveu na história da luta transformadora do nosso povo. Inclusive, inspirando Milton Nascimento e Fernando Brant a esta oração de fé e juventude chamada “Coração de Estudante”.
 
“Há que se cuidar do mundo......”
 
 
É inadiável sintonizar nossa juventude novamente com os nossos rebeldes. Desde Honestino Guimarães que pavimentou a história da UnB de dignidade e bravura, junto com tantos outros; mas sobretudo com a proposta da Universidade Necessária de Darcy Ribeiro, que construía uma universidade para pensar e formatar um projeto de nação emancipada, não de joelhos, não embriagada pelo nada, nem chocada pelos aparelhinhos de choque elétrico. Estes seriam atributos de quem praticaria tais concepções no dia a dia de suas relações humanas e familiares? Adotarão tais conceitos , critérios  e práticas quando tornarem-se juízes, empresários, professores, pensadores, magistrados, embaixadores, médicos, psicólogos, generais????
 
É urgente uma rebeldia santa e cidadã contra estes trotes abjetos. Que tal se os calouros fossem estimulados a coletar montanhas de livros, numa calourada cultural, e ajudar a montar bibliotecas nos bairros populares, onde elas são rarefeitas e mal equipadas? Que tal se fosse tarefa da calourada organizar batalhões para a doação de sangue, já que o Hemocentro está sempre necessitado desta generosidade que precisa ser expandida, consolidada, aperfeiçoada em todos os cidadãos?  Comparemos gestos e modos....
 
“Juventude e fé”
 
O caminho percorrido até aqui   -  mesmo com a quase total demolição da universidade pública pelo vendaval neoliberal   -  não leva a ficar de joelhos. Ao contrário, a luta do povo brasileiro resistindo e derrotando em grande parte o vendaval neoliberal, construiu uma flor de situação que pode muito bem ser aproveitada pelo movimento estudantil para a tomada de iniciativas audaciosas, criativas, superando uma luta que registra uma presença muito secundária na conjuntura política. E para o que já foi o Movimento Estudantil, para o papel histórico desempenhado pela UNE em outros tempos, sendo um precioso celeiro de quadros, de idéias, de projetos, faz-se necessário um salto, ou, como já dito, uma overdose de rebeldia bem direcionada.
 
Onde estava o movimento estudantil quando a oligarquia brasileira fez uso do chicote e do pelourinho ali na comunidade de Pinheirinho mostrando que não quer deixar mudar a relação de Casa Grande e Senzala em que esmaga a maioria do povo brasileiro? Quantos prováveis Pinheirinhos não existem hoje, em potencial, exigindo, a gritos, que a UNE expresse uma solidariedade de fato, concreta, ombro a ombro com estas massas humilhadas e oprimidas, por meio de projetos práticos de habitação, saúde, cultura, urbanização,  o que obrigaria o governo federal a ir muito mais longe no seu ritmo um tanto lento  -  para além dos boicotes  -  com que toca programas corretos, embora tímidos,  como o Minha Casa, Minha Vida?
 
“Mas renova-se a esperança......”
 
Por onde anda a Une, o movimento estudantil, que não sobem o Morro do Alemão, no Rio, junto com o Exército, com o estado, com os serviços públicos da Prefeitura, criando uma relação mais regular e sistemática com as massas exploradas através da aplicação de inúmeros projetos que se encontram perdidos e isolados no âmbito acadêmico, indefensavelmente longe das necessidades populares?  Nessas localidades, agora servidas de teleféricos e outros serviços que sequer subiam o morro, como os carteiros, a limpeza urbana, as ambulâncias etc, a UNE poderia reeditar, com a atualização que a etapa histórica exige, os seus inesquecíveis Centros Populares de Cultura, os CPCs.  O que levaria a universidade de fato a uma revitalização e a um rejuvenescimento em suas práticas e conceitos vorazmente tragados pela ditadura de um mercado cartelizado. A um legítimo e necessário choque de cidadania!
 
Há cursos de cinema nas universidades, mas  90 por cento dos municípios brasileiros sequer salas de cinema possuem. E quando as tem, 95 por cento do que se exibe é de procedência norte-americana, mesmo com todas as mudanças realizadas nos últimos tempos nas políticas do setor. Quando existia a Embrafilme, 40 por cento do mercado cinematográfico nacional era ocupado por produções nacionais, ótimo tema para a discussão entre estudantes, os cineastas e as comunidades populares não? Discutir por que o povo brasileiro ainda é proibido na prática de freqüentar cinemas e,  também,  de ter acesso pleno ao cinema nacional?
 
Há experiências importantes para o desenvolvimento, por exemplo, de inseticidas biológicos para o combate à dengue, experiências que combinam esforços entre a Universidade e a Embrapa, mas que têm seu alcance cerceado porque todas as licitações no âmbito do Ministério da Saúde são vencidas pelos laboratórios transnacionais, cujos produtos,  muitas vezes não apropriados para utilização nas condições brasileiras, são impostos pelas regras da cartelização que domina neste setor. Este não é um bom tema para a UNE discutir com as comunidades, mas também para estimular as experiências de produtos como este, voltados para uma ameaça diária aos setores mais pobres. O que implicaria em questionar  e cobrar do governo  mudanças nas regras de licitação que favorecem sistematicamente as transnacionais? O que desenvolveria as forças que querem avançar social e politicamente.
 
  Fazer um intercâmbio permanente, itinerante, entre ciência e comunidade, formatando novas iniciativas, criando uma relação política que pode estimular os partidos e os sindicatos, hoje em certa medida distantes desta luta direta das comunidade pobres, a organizarem ações para encorajar e dar audácia política ao governo Dilma para ir bem mais longe. Quantos Pinheirinhos novos estão por explodir? Qual é a política da UNE, dos partidos de esquerda, dos sindicatos para prevenir e antecipar-se a situações bárbaras como aquela, oferecendo uma saída política, programática, com a presença política decisiva do Poder Público?
 
“Há que se cuidar do broto...”
 
 
Há uma infinidade de serviços a que as comunidades pobres não têm acesso, seja para uma simples documentação, ou a um programa preventivo de saúde, ou de soluções simples e efetivas de edificação, urbanização e arquitetura, para proteger e prevenir  das situações de desmoronamentos que ceifam tantas vidas. Não deveria estar ali a UNE com os seus novos CPCs, com a alma daqueles CPCs de antes, ombro a ombro com as massas, e até mesmo fazendo convênios de cooperação técnica com o Exército e a Marinha, que já estão lá, para salvar vidas? Para criar uma outra mentalidade, que forje a uma unidade cívico-militar capaz de  enfrentar os desafios que o império prepara para interromper o curso de transformações dos governos Lula-Dilma? Uma aliança cívico-militar, como a que existe na Venezuela, em torno de projetos para a urbanização de favelas, construção de moradias, atendimento médico-odontológico à população, onde há uma presença destacada do exército.
 
Por que não se pensar um jornal de ampla circulação de massas, como o Juventude Rebelde , em Cuba? Por que não criar, em parceria com a Petrobrás, com o Exército, um circuito popular de cinema e de teatro como já existiu na época dos CPCs da UNE, antes do golpe de 64? Por que a UNE não  poderia estimular a implantação ampla de rádios e tvs comunitárias, mobilizando a sociedade para a compra de equipamentos e oferecendo cursos técnicos para a formação de comunicadores populares capazes de registrar sua própria realidade, sua própria história, ao invés de serem vítimas do desprezo comunicacional da mídia oligárquica predominante? Por que não poderia a UNE estar com escritórios de assessoria jurídica nas comunidades carentes em todo o Brasil, numa espécie de Novo Projeto Rondon, com uma ideologia libertadora e comunitária, ombro a ombro com experiências que já estão sendo feitas por alguns governos estaduais, visando estimular a solução negociada de conflitos, o que ,efetivamente, leva à redução de tensões e de violência, como comprovam vários estudos?
 
Pra que a vida nos dê flor e fruto...
 
Enfim, há infinidade de iniciativas e experiências a desenvolver, o que sugere que o movimento estudantil poderia  estar discutindo muito mais além de quem controlaria os diretórios e centros acadêmicos. Colocar um novo critério  emulativo, no centro da luta estudantil: quem desenvolve experiências de maior profundidade e alcance solidário junto às massas, devolvendo ao povo, na forma de projetos e serviços, o que lhe é devido, pois é ele quem sustenta a Universidade?  Tudo sito, em boa medida, está na dependência da uma decisão política de construir uma nova relação entre governo Dilma, governos estaduais e prefeituras, a UNE, o movimento sindical, o movimento de rádios e tvs comunitárias e as comunidades populares. O que se nota é que em muitos momentos é o governo federal que está mais à frente que a própria UNE e o movimento sindical, tomando iniciativas, tomando a dianteira, como, por exemplo, quando ocorrem catástrofes, desmoronamentos, e é visível a ausência organizada da esquerda, seja no movimento estudantil, sindical, popular, para uma solidariedade efetiva às massas atingidas. Isto mostra que o movimento estudantil pode ir muito mais além em audácia programática e política.
 
Aquela foto de estudantes de joelhos na UnB bem que poderia motivar uma profunda rebelião de conceitos e visões no seio do movimento estudantil e da esquerda em geral.
 
Afinal,  contando com a inolvidável Violeta Parra:

“Me gustan los estudiantes
porque son la levadura
del pan que saldrá del horno
con toda su sabrosura,
para la boca del pobre
que come con amargura.
Caramba y zamba la cosa
¡viva la literatura!”



 
Beto Almeida, jornalista
 
Desfrute a canção Coração de Estudante:       http://youtu.be/xwYchA3M0Dg
 
Expulso da UnB pelo Reitor Capitão José Carlos Azevedo, quando a instituição era área de segurança nacional. Anistiado em 1979. Reintegrado à UnB concluiu o curso de jornalismo.
 
 
 
 
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